15 Maio, 2020
Valorizar o papel dos enfermeiros – carta ao Governo
Em carta enviada à Ministra da Saúde a 12 de maio, Dia internacional do Enfermeiro exigimos que o papel dos enfermeiros seja valorizado. É urgente reiniciar a construção de soluções para os problemas da profissão.

 

O Dia Internacional do Enfermeiro foi criado pelo Conselho Internacional de Enfermeiros. E, a data foi escolhida para assinalar o aniversário do nascimento de Florence Nightingale, considerada a fundadora da enfermagem moderna.

Florence Nightingale nasceu em Florença no dia 12 de maio de 1820. As visitas constantes que fazia com sua mãe a doentes foram decisivas na escolha de Florence pelo curso de enfermagem. Florence estudou, publicou estudos comparativos e foi convidada para superintendente de enfermeiras voluntárias na Guerra da Crimeia, em 1853. Nessa altura, as inovações trazidas por ela à enfermagem resultaram na diminuição de mortes de 42,2% para 2,2%. A sua dedicação rendeu-lhe a condecoração da Cruz Vermelha Real em 1883.

A Organização Mundial de Saúde decidiu que 2020 seria o Ano Internacional do Enfermeiro. Fê-lo com o objectivo de trazer para a agenda dos governantes do mundo inteiro, uma problemática, que apesar dos alertas sistemáticos e contínuos, tem sido relegada para um plano secundário: a extrema carência de enfermeiros e enfermeiros especialistas em todos os países e o seu impacto negativo no acesso a cuidados de saúde pelas populações.

É um paradoxo que em todas as Assembleias Mundiais da OMS, os países membros subscrevam as orientações daquela Organização, nomeadamente, os “Objetivos para o Milénio” e “Os Objetivos para um Desenvolvimento Sustentável” onde se inclui a Cobertura Universal, mas continuem a praticar uma política de recursos humanos que coloca, logo na base, dificuldades em atingir o que subscrevem. Em Portugal, não é diferente.

Desde o início deste século, mas com base em politicas decididas em 1990, assistiu-se de forma paulatina à tentativa de destruir o Serviço Nacional de Saúde (SNS) e atentar contra a autonomia de decisão técnica dos profissionais de saúde. Só não se foi mais longe devido à luta, também, dos diferentes grupos profissionais da área da saúde. O ponto alto deste ataque aconteceu entre os anos de 2011 e 2015 em que a mensagem argumentativa da situação financeira do país dava para tudo e determinando uma inaceitável redução do Orçamento do Ministério da Saúde.

A Lei de Bases da Saúde de 1990, a primeira Parceria Público-Privada do hospital Amadora Sintra, as Experiências Inovadoras de Saúde de Santa Maria da Feira, do Barlavento Algarvio e de Matosinhos, os hospitais sociedade anónima depois empresas públicas e finalmente a passagem dos funcionários públicos a contrato em funções públicas, tudo fez parte da mesma estratégia: reduzir o papel do Estado e dos seus trabalhadores nos serviços essenciais e funções sociais, constitucionalmente consagradas.

Pelo meio foram destronadas medidas emblemáticas que se afiguravam “perigosas” aos interesses neoliberais e ao seu lema: “a saúde é o melhor negócio do século 21”. São exemplo, a eleição dos diretores médico e de enfermagem nos hospitais (era muito democrático), a implementação dos sistemas locais de saúde e dos centros de responsabilidades integradas, a utilização plena da capacidade instalada no SNS e a sempre preterida promoção da saúde e prevenção da doença.

A atual situação pandémica pelo COVID-19 e a pressão sobre os sistemas de saúde, designadamente sobre os Serviços Nacionais de Saúde, as suas potencialidades e as suas fragilidades deverá fazer-nos refletir.

É interessante constatar o reconhecimento por parte do Sr. Presidente da República a um enfermeiro português a trabalhar num hospital público do Reino Unido. Um reconhecimento merecido, não se coloca dúvida, como aliás deverão ser reconhecidos todos os profissionais de saúde que globalmente combatem esta pandemia.

Mas este reconhecimento vai para além da “espuma dos dias”. O Serviço Nacional de Saúde inglês (NHS), inspirador do SNS português, foi criado depois da 2ª guerra mundial para garantir que todos os ingleses, depois daqueles anos de devastação, tivessem acesso a cuidados de saúde e ao bem-estar.

Na década de 80 do século XX o NHS sofreu, pelas mãos do Partido Conservador liderado por Margareth Tachter, o mais brutal ataque já visto a um serviço público. Entre outros aspetos, muitos hospitais foram privatizados e outros transformados em parcerias público-privadas, as unidades dos cuidados de saúde primários foram transformadas em trust (empresas) e os enfermeiros foram afastados dos lugares de decisão onde tinham estado desde a criação do NHS.

Os relatórios em saúde e os indicadores depressa começaram a refletir o impacto daquelas medidas: uma população inglesa mais doente e mais medicalizada. Em meados da década de 90 foram identificados vários retrocessos e é reconhecido que os enfermeiros deveriam voltar a ocupar lugares de decisão em toda a hierarquia.

Curioso quando, afinal, remonta ao final do século XIX esta constatação: Florence estudou, publicou estudos comparativos e foi convidada para superintendente de enfermeiras voluntárias na Guerra da Crimeia, em 1853. Nessa altura, as inovações trazidas por ela à enfermagem resultaram na diminuição de mortes de 42,2% para 2,2%.

Para os governantes portugueses, a realidade experienciada pelo nosso mais antigo aliado europeu, a evidência da gestão feita por enfermeiros e o impacto dos cuidados de enfermagem na diminuição de mortes ou da mortalidade infantil nos nossos centros materno-infantis, de nada serviu. A sua guerra era/é, contra os serviços públicos e, de entre estes, os de saúde. Afinal se o tratamento da doença é um negócio lucrativo, as pessoas pouco interessam!

O reconhecimento do Sr. Presidente da República ao enfermeiro português a trabalhar num hospital do NHS inglês, enquanto decisor político em vários momentos e membro da cúpula do PSD, terá de ser entendido como o reconhecimento que a opção por políticas de desmantelamento e privatização do SNS foram/são erradas. E que caso tivessem sido concretizadas na sua totalidade, como era objetivo do PSD, estaríamos no atual contexto pandémico a enfrentar um drama ainda maior, nomeadamente em termos do número de mortes.

 

A Enfermagem e os enfermeiros portugueses

A enfermagem portuguesa e os seus líderes deram um “passo de gigante”, em 1974, quando decidiram que no nosso país deixariam de existir auxiliares de enfermagem. Quem o era (a maioria) fez os chamados “Cursos de Promoção” e passou a ser enfermeiro. E, nas Escolas de Enfermagem passou a ser administrado os Cursos de Enfermagem Geral. Este “passo” foi muito relevante para que, em 1988, o ensino de enfermagem integrasse o sistema educativo ao nível do Ensino Superior Politécnico, com a atribuição do grau de Bacharel, e, em 1999 a atribuição do grau de Licenciatura.

Pelo meio, as lutas pelo reconhecimento social da profissão permitiram a conquista de uma carreira única para todos os enfermeiros do setor público (1981), o reconhecimento da enfermagem como uma profissão intelectual e cientifica na Classificação Nacional das Profissões, a consagração da autonomia dos enfermeiros com o Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros em 1996 (de aplicação a todas as instituições de saúde) e, finalmente, a delegação na profissão e nos enfermeiros a sua auto-regulação como instrumento para salvaguardar os interesses dos cidadãos no que aos cuidados diz respeito, a Ordem dos Enfermeiros (1999).

É o conjunto de todos estes “pilares” da profissão que está na génese do reconhecimento internacional da Enfermagem Portuguesa.

Neste ano, e neste dia, que celebramos a enfermagem e os enfermeiros, importa reforçar a importância do papel dos enfermeiros na assessoria, na gestão, na prestação dos cuidados gerais e especializados e na formação graduada e pós-graduada.

Vivem-se momentos muito conturbados devido à pandemia. Por isso, hoje mais do que nunca, são perceptíveis situações preocupantes de saúde pública, cada vez com menos tempo de permeio. Foi a designada gripe das aves, o ébola e agora o COVID-19. Por ser distante, não existe a consciência do combate diário dos profissionais de saúde, também dos enfermeiros e dos enfermeiros especialistas, à malária, à dengue, à lepra, à subnutrição, à mortalidade materno-infantil, pelo acesso a água potável, etc. Poucos terão consciência que foi uma organização de enfermeiros, o Conselho Internacional de Enfermeiros, que pela primeira vez alertou para a contrafação de medicamentos.

São também os enfermeiros que em todo o mundo têm estado na linha da frente na exigência da cobertura universal dos planos de vacinação, que têm tido um papel determinante na luta contra o tráfico de seres humanos (muitos deles enfermeiros e crianças), contra a violência doméstica, etc.

O denominador comum que os faz estar em todas estas “linhas da frente” é a proximidade e a confiança que estabelecem com as pessoas, com os doentes e as suas famílias.

 

O legado do Ano Internacional dos Enfermeiros

Neste ano de 2020, e em particular neste 12 de maio, é importante que se afirme e exalte que foram os enfermeiros, ao longo dos anos, que têm assumido este papel porque este é, também, o papel dos enfermeiros.

Teremos, nós enfermeiros e as suas estruturas representativas, que exigir ao Governo e outras entidades empregadoras uma nova forma de olhar para a enfermagem e que os enfermeiros sejam reconhecidos como os profissionais de saúde que, estando mais próximos das pessoas, estão numa situação privilegiada para garantir o bem-estar global da população.

Como dizia o Dr. Tedros em 2019, “Não é possível atingir a cobertura de saúde universal e os objetivos inscritos nos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável sem o empoderamento dos enfermeiros e enfermeiros especialistas e sem o aproveitamento desse seu poder”.

 

O público e amplo reconhecimento que a enfermagem e os enfermeiros têm tido nos últimos meses é uma evidência. Mas os decisores, Governo e patrões, têm que ir mais longe na materialização desse reconhecimento. E, por isso, é exigível, designadamente:

  • Que o custo com os enfermeiros seja considerado um investimento e uma mais-valia no sistema de saúde, designadamente no SNS, e não uma despesa nos planos e orçamentos das instituições. É fundamental atribuir valor económico às intervenções de enfermagem e a sua consideração na elaboração dos orçamentos. É necessário alterar o modelo de financiamento das organizações no sentido de ter em conta, nomeadamente, os resultados em saúde;
  • Que aos enfermeiros seja reconhecida a sua comprovada capacidade de liderança, participando em todos os patamares de decisão, nomeadamente integrando órgãos de direção;
  • Que se admitam todos os enfermeiros que terminam a sua formação superior, dada a evidência sobre o impacto negativo da sua carência nos serviços;
  • Que o potencial das práticas especializadas e avançadas de enfermagem sejam reconhecidas e valorizadas como uma das formas para dar resposta à agenda global da cobertura universal de saúde, aos novos modelos de cuidados, às doenças crónicas, ao aparecimento de novas doenças, ao combate das consequências das alterações climáticas, agro-alimentares, etc;
  • Que sejam criadas condições para a retenção dos que já trabalham. Nomeadamente, através da melhoria das condições de trabalho, da compensação do risco e penosidade inerente à função com impacto nas condições de aposentação, e, melhoria dos salários, desde logo a correção de injustiças relativamente à contagem de tempo de serviço/pontos e carreira;
  • Que se reflicta e redesenhe o actual modelo de formação dos profissionais de saúde, integrada no sistema universitário, que, designadamente, potencie o efetivo trabalho das equipas multiprofissionais que a crescente complexidade das necessidades em saúde exigem;
  • Que a evidência produzida por enfermeiros seja tomada em linha de conta e seja utilizada, nomeadamente, para construir novos serviços e novas formas de os organizar. Na verdade, é preciso que os decisores políticos deixem de estar vinculados aos organigramas do passado e aceitem que, ter enfermeiros em posições de liderança e dar-lhes voz, é reconhecer que estão a fazer um investimento no futuro do SNS e na saúde dos portugueses;
  • Que se reconheça e valorize que o vasto conjunto de intervenções dos enfermeiros e dos enfermeiros especialistas, e o seu papel na sociedade, nos centros de saúde, nos hospitais terá que ser repensado;
  • Que se reconheça e valorize que ter mais enfermeiros nos cuidados de saúde primários é garantir mais e melhor acesso aos cuidados de saúde que se traduz em bem-estar físico, psíquico e social aos portugueses;
  • Que se reconheça e valorize que ter mais enfermeiros nas Unidades de Cuidados na Comunidade, cuja missão é prestar cuidados de saúde a grupos de risco e pessoas vulneráveis, é garantia da diminuição dos factores de fragilidade e, consequentemente, de segregação que atingem estas pessoas. É garantir, no quadro atual, que os doentes infetados com Covid-19 possam ser tratados e reabilitados nos seus domicílios e que os idosos, com várias co-morbilidades, não “descompensam”. É garantir que os mais novos, as crianças e jovens, têm nas suas escolas os ensinos para a saúde que serão determinantes na sua vida futura;
  • Que se reconheça e valorize que são os enfermeiros que estão, e sempre estiveram, na linha da frente, no informar e ensinar, no desenvolvimento e implementação das politicas de saúde;
  • Que se reorganize e invista no dispositivo de Saúde Pública, desde logo integrando mais enfermeiros;
  • Que as politicas de saúde estejam em todas as politicas. A Lei de Bases da Saúde fixou a criação dos Sistemas Locais de Saúde, envolvendo todos os parceiros que possam existir naquela comunidade: autarquias, escolas, universidades, hospitais, centros de saúde, serviços de saúde pública, lares, etc. É emergente a sua regulamentação e aplicação. É necessário que os enfermeiros, pelo seu conhecimento e competência, estejam no patamar de decisão mais elevado destes Sistemas Locais de Saúde, enquanto articuladores das politicas de saúde a adoptar localmente;

É preciso que todos percebam que os enfermeiros colocam, e, sempre têm colocado, o utente e o doente no centro das suas intervenções. Em regra não decidem o que fazer ou não fazer em função do maior benefício que cada uma dessas opções lhes pode trazer.

Neste Ano Internacional do Enfermeiro e especialmente neste Dia Internacional do Enfermeiro, mais do que recordar o reconhecimento que a nível global lhes têm sido feito, é exigível continuar a colocar na agenda política o imprescindível papel dos enfermeiros e dos enfermeiros especialistas no acesso e nos ganhos em saúde das populações, no fundo, na conquista do bem-estar físico, psíquico e social dos seres humanos e não só na ausência de doença.

Neste contexto e face às afirmações da Sr.ª Ministra (“Reconheço que as aspirações da Profissão de Enfermagem são muitas, têm o acolhimento da maioria da população e será necessário um grande esforço da parte de todos nós para conseguirmos construir soluções que permitam responder-lhe nos tempos que aí vêm”), é urgente reiniciar a construção das necessárias soluções.