
PERFIL
PILAR DEL RÍO
Jornalista, escritora, tradutora e presidenta da Fundação José Saramago, Pilar del Río reivindica-se viva, com voz e intervenção numa cidade de mortos. Falámos com ela numa destas tardes, viradas para o rio.
Como vê o Serviço Nacional de Saúde?
Nunca precisei de usar o Serviço Nacional de Saúde. Acho que há atenção e cuidado, mas faltam meios, penso que está antiquado estruturalmente e em meios tecnológicos. Penso que ainda corresponde a uma conceção que não é a de 2022, que é mais do passado. Foi uma inovação quando foi introduzida, mas essa inovação deve ser feita todos os anos, continuamente.
É uma perceção transversal a Espanha e Portugal?
É muito difícil comparar Espanha e Portugal porque Espanha é um país mais forte, mais rico, poderíamos comparar, talvez, Andaluzia e Portugal, que tem mais ou menos o mesmo número de habitantes e mais ou menos os mesmos rendimentos. O que é óbvio é que se nos descuidamos um único momento o processo de privatização da saúde é imediato e está a acontecer em todo o lado. Quando o governo é de direita, é mais rápido, acelera o processo. Em Andaluzia, está a acelerar porque em Espanha a saúde é autonómica, está transferida para os governos autónomos. Quando o governo é de direita, imediatamente começa a colaboração com a saúde privada.
Há um processo de minimização da saúde pública, e é preciso estar alerta porque o processo é mundial, não é português.
Transitando para outro plano, como está a ser o desenvolvimento de uma fundação em Portugal?
Eu nasci em Espanha e convivi muito tempo com um português, em Espanha. Quando o português morreu, percebi que ia ter de pagar impostos maiores do que alguma vez pensei pagar porque, de repente, recebi o legado de José Saramago. E decidi que isso seria em Portugal e fiz-me cidadã para pagar os impostos em Portugal. Decidi e, logo que o disse, deram-me a nacionalidade.
Antes não tinha pedido a nacionalidade portuguesa porque se a tivesse pedido, Saramago também pediria a espanhola e os portugueses não o suportariam. Enquanto receber direitos, vou continuar a pagá-los em Portugal, 100%. Os meus impostos pago-os inteiramente em Portugal. E pago mais do que pagaria em Espanha, mas não me importo.
Não se arrependeu?
Não. Fiz porque quis. Podia ter continuado a pagar os meus impostos em Espanha, mas quis pagá-los em Portugal. Nunca tinha falado disto, falo agora por estamos a falar do serviço de saúde.
Foi depois dessa decisão que viveu pela primeira vez em Portugal?
Não, tínhamos casa em Portugal. Eu e o José passávamos parte do nosso tempo aqui. É verdade que vivíamos também em Lanzarote, mas tínhamos casa cá e Saramago pagava aqui os seus impostos, apresentava-se às eleições aqui, votava aqui, exercia todos os seus deveres cívicos aqui. Mas trabalhava lá porque aqui não conseguia, era um turbilhão de reuniões sociais, chamadas. Aqui não tinha tempo para escrever. Lá, sim.
Há uma pergunta que gostamos de fazer: houve algum profissional de enfermagem que a tenha marcado mais?
José Saramago esteve várias vezes a ponto de morrer e esteve na unidade de cuidados intensivos várias vezes e foi sempre cuidado por enfermeiros portugueses em Lanzarote. Não havia aqui [em Portugal] trabalho, estamos a falar da crise de 2007, 2008, 2010.
Em Lanzarote, esteve num hospital privado e a equipa de enfermagem era maioritariamente de portugueses. Houve uma vez, véspera de natal, os enfermeiros queriam fazer alguma coisa, mas não podiam e chegou um momento em que se abraçaram todos, na UCI.
O meu marido contou-me que, numa das visitas, o enfermeiro disse-lhe: Tire a camisola. E ele encontrou-se no seu idioma.
A maioria destes enfermeiros foram para Inglaterra, entretanto. Foram maravilhosos. Eram competentes, novinhos, preparados. Não tinham muitos anos de experiência, mas tinham preparação.
Não é possível não ser interventiva?
Não ser interventivo é estar morto. A verdade é que a cidade está cheia de cadáveres, todas as cidades estão cheias de cadáveres, mas eu reivindico-me viva. E os meus amigos estão vivos e as pessoas que conheço estão vivas, intervêm, protestam, manifestam-se, mordem a jugular, saímos.
A Andaluzia bem precisa, com o aumento do Vox.
Já existiam antes, mas estavam caídos, agora já levantaram a cabeça e apoiam o governo do Partido Popular.
Os governos com partidos de direita levam à privatização de serviços de saúde, principalmente de tudo o que são cuidados continuados de saúde, e nomeadamente em Portugal.
Nesse aspeto, sou radical. Não são os governos que querem privatizar a saúde, são os cidadãos. Os governos fazem o que querem os cidadãos. Os cidadãos querem pagar pela saúde então que paguem. Somos nós quem decidimos.
Nós somos poder, cada um nós é uma potência impressionante. E se decidirmos votar por quem é a favor da privatização da saúde ou quem está uns dias sim e uns dias não. Se somos claros e conscientes e dizemos que na saúde não se toca, na saúde não se toca. Mas há muita gente que não se importa de pagar pela saúde. Por isso, os partidos sugerem, propõem, mas são os cidadãos que decidem.
Se tivesse de descrever Portugal, com essa perspetiva tão rica de dentro e de fora, quais seriam os 4-5 fatores determinantes para sintetizar este país?
Creio que o mais importante que aconteceu em Portugal, e que foi exemplar, é que, num momento em que a direita era triunfante em toda a Europa, Portugal elegeu um partido socialista. E acho que isso também influenciou, de alguma maneira, as eleições espanholas posteriormente. E, de repente, encontrámo-nos com uma Europa grotescamente reacionária e um Península Ibérica com propostas progressistas que se converteram num feixe, num farol, para outros países europeus e da América Latina.
O caso da Península Ibérica foi muito importante e fizeram-se coisas muito importantes. A vitória dos partidos socialistas importa por haver algum controlo de algumas medidas e porque se acabou com aquele período horrível da troika. E restabeleceu-se a decisão aos cidadãos e ao Parlamento português, já não eram os homens de negro que mandavam, mas, de novo, os representantes do povo.
Que mais se fez nestes últimos tempos? Tratar de nos governar com uma certa lógica, atendendo às pressões que nos chegam da União Europeia e do mercado. Sendo que um país pequeno não pode fazer outra coisa. E o que é verdade é que se gerou confiança. Depois da troika, ganhou o partido socialista e as pessoas continuavam a ganhar o mesmo, mas iam a sorrir pela rua, porque se sentiram respeitadas. Desde o tempo terrível da governação do Passos Coelho à chegada do partido socialista, houve uma mudança decisiva na confiança dos cidadãos. Isso é o mais importante.
A singularidade ibérica tem de ser defendida. Nestes últimos tempos, assinou-se um acordo entre Espanha e Portugal, um pacto energético, de uma importância enorme, mas a que a opinião publicada não deu atenção.
A ditadura inoculou o anti-espanholismo. É o mesmo que o patriarcado dizer que não há problema alguma na violência doméstica quando há uma violência machista extrema. Hoje as pessoas circulam mais, vão a Espanha e vêm cá, mas não se faz por conseguir um acordo entre os dois países. Porque somos quase 60 milhões de pessoas e temos uma voz muito forte se formos juntos.
Agora num plano mais pessoal, continua a escrever?
Eu não sou escritora, sou jornalista. Nos próximos dias vai sair, em Espanha, e dentro de uns meses em Portugal, um livro de crónicas sobre a vida de José Saramago em Lanzarote.
São capítulos breves sobre a música, os vulcões, os cães, o ir comprar o pão, a visita dos amigos, o trabalho. São escritos como se fosse uma jornalista. E uma jornalista nunca é imparcial, ou é a voz do dono ou é a sua própria voz.
A edição está integrada nas comemorações do centenário ou é uma coincidência sair agora?
É uma coincidência. É publicado por uma casa editorial muito pequenina e chama-se “A intuição da ilha”.
Conto como Saramago acabou por viver numa ilha, ele que era de terra dentro e nem se sabe bem quando foi a primeira vez que viu o mar. Mas, mesmo assim, escreveu a “Jangada de pedra” e tem inúmeras alusões a ilhas nas suas obras. Por isso, digo que houve sempre uma intuição de ilha, inexplicável.
Foi um processo doce, difícil?
Foi trabalho (risos). Tenho de dizer que foi uma rapariga muito jovem, que criou uma editora com o seu companheiro porque querem ler livros que não estão a ser publicados. Por exemplo, “As viagens ao sul”, de Virginia Woolf. E perguntaram-me se não queria escrever alguma coisa para ser publicada e eu comecei a escrever.
A editora é de Lanzarote e chama-se Itinerário porque num dos livros, aparece uma frase de José Saramago que diz: O livro dos itinerários, um livro inexistente. A rapariga que criou a editora é uma das guias da minha casa de Lanzarote. A minha casa está aberta a visitas.
O ano passado, lançámos a campanha Agora somos nós, a que a Pilar aderiu de imediato. Recebemos uma onda de apoio de forma fantástica.
Claro. Em Espanha fez-se uma coisa que em Portugal não se conseguiu fazer, que era às 8 da noite a população ir para as janelas para aplaudir os médicos e enfermeiros. E eu ainda não consigo pensar nisso sem me emocionar. Que a cidade se juntasse toda, todas as noites, às 8 da noite, para aplaudir à janela. E saíram também as Marés Brancas pela saúde. Porque queremos apoiar e celebrar a saúde, saímos para a rua.
O número 120 da revista Enfermagem em Foco está disponível aqui.