O SEP completa 35 anos a 20 de junho de 2023.

Recuamos no tempo, e vimos de trás para a frente, com as histórias, os rostos e as memórias de uma luta que acontece bem antes e durante estes 35 anos de SEP.

2022
  • Contagem de pontos

    “Isto aconteceu em novembro de 2022. Depois de muita espera, eu e a minha esposa, que também é enfermeira, fomos reposicionados na carreira e progredimos, tendo em conta toda a acumulação de pontos. Nessa altura, inesperadamente, tivemos uma surpresa com a nossa folha de vencimento porque não estávamos a contar com o pagamento de retroativos.

    Eu e a minha esposa entrámos na mesma altura, temos vencimentos semelhantes e recebemos retroativos semelhantes. Por sermos atualizados e progredirmos, o nosso vencimento – por pouco que seja e não sendo ainda o que achamos justo – sofreu uma melhoria. Ainda que os nossos pontos tenham sido contados desde janeiro de 2019 e não desde janeiro de 2018, como o SEP reivindica, foi bom recebermos esse dinheiro que nos era devido, não foi bónus.

    Por ter sido tão bom e inesperado, ficámos com o pé atrás, desconfiados, e depois começaram a haver alguns rumores de que a nossa entidade patronal, a Unidade Local de Saúde do Alto Minho (ULSAM), poderia recuar e poderíamos ter de devolver. Há tanta incerteza… Então, tentei perceber como é que estavam os restantes colegas CITs (Contrato Individual de Trabalho).

    Como fui sempre alguém que os colegas identificavam como ligado ao sindicato e a quem pediam informações, tentei saber como estava a ser conduzido o processo na ULSAM, quem estava a receber, quem não estava, tentar perceber a situação de cada um, através das redes sociais, num grupo no Facebook.

    Aqui o preocupante é que há várias situações, na mesma entidade, o que nos leva a crer que há muita incerteza. Parece que não sabem bem como conduzir este processo, porque há colegas que têm situações e percursos profissionais idênticos, antiguidade semelhante, e uns estão a receber e outros ainda estão à espera, o que gera muita intranquilidade. É uma situação preocupante porque as pessoas estão a contar com algo que lhes é devido e já há muito tempo. Mesmo os que já recebemos, sentimos injustiça porque somos solidários uns com os outros.

    Eu estou em crer que há boa-fé da instituição porque o que vamos ouvindo dá a entender que querem que isto se resolva a bem para os enfermeiros, mas que há muitas dúvidas neste processo. O que eu vejo é que as instituições têm pouca autonomia para gerir isto, estão sempre dependentes da tutela. O que estamos a fazer é aguardar e, se não avançar, há colegas que estão a pensar em recorrer a tribunais. Esperamos que se resolva rapidamente, com estas greves e estas lutas.“

2017
  • Lutas intersindicais

    “Desde 2005, a Administração Pública portuguesa teve um congelamento das progressões, ou seja, os trabalhadores, incluindo os enfermeiros, não progrediram nas suas carreiras. Simultaneamente, houve um aperto por parte dos sucessivos governos para o controlo orçamental. A par disso, verificou-se dificuldade dos sindicatos em obterem resultados sensíveis para melhoria das condições de trabalho. Como se isso não fosse suficiente, entrámos em 2010-2011 com a crise imobiliária. Não foi suficiente estarmos congelados nas progressões, deixou de haver aumentos salariais e ainda cortaram no salário, com perda de rendimento real, líquido, no final do mês.

    Em 2015, alterou-se o governo e entra António Costa, com duas ideias major: virar a página da austeridade, por um lado, e não dar um passo maior que a perna, por outro. O que é que sucede? Com esta ideia de virar a página à austeridade e começar a repor o que se tinha perdido, é natural que comecem a explodir os movimentos reivindicativos dos sindicatos todos.

    A enfermagem não foi imune a isso e é nesse quadro que, em 2017, emergem vários movimentos no seio dos enfermeiros com ideias mais radicais e alguns dão origem a sindicatos novos. Mais radicais em relação ao discurso, com muito populismo e demagogia à mistura, como se fosse possível conquistarmos tudo de uma vez e como se a Terra girasse em torno dos enfermeiros. Não só em relação ao discurso mas também em relação às lutas, isto é, tudo era possível.

    Promovia-se a emigração dos enfermeiros todos para fugirem para fora do país, como sinal de que ou o Governo cedia ou então os enfermeiros iam embora – como se isso alguma vez fosse concretizável, abandono dos serviços. Um discurso muito radical que era acolhido por parte dos enfermeiros como possível de levar o Governo a ceder para lhes dar as condições de trabalho que tínhamos perdido e com que, habitualmente, os sindicatos mais tradicionais não alinhavam, nestes discursos e nestas práticas ditas mais radicais.

    No desenvolvimento desse movimento que começou em 2017, chegámos a abril de 2018 e fizemos um acordo entre todos os sindicatos para a revisão da carreira. Nesse acordo conjunto, público, escrito, havia dois grandes domínios: um conjunto de aspetos a alterar na carreira e, num outro domínio, a articulação de estratégias de luta entre todos os sindicatos. Estivemos em conjunto até, sensivelmente, 19 de outubro de 2019. Fizemos greves, manifestações e a última foi precisamente nesse dia 19 de outubro de 2019. Esta data não nos esquecemos porquê? Porque passámos a fase desde abril, em que fizemos o documento, com ações de luta conjuntas para abrirmos o processo negocial e esta etapa culminou no dia 19 de outubro, com uma grande manifestação nacional.

    O que sucedeu foi que, no ministério, acertámos entre os presidentes de todos os sindicatos de enfermagem, nesse dia, uma reunião para o dia 24 de outubro, até porque o SINDEPOR e o ASPE só podiam nesse dia. Entretanto, somos surpreendidos, nessa manifestação, com o apoio à dita greve cirúrgica que o movimento andava a dinamizar e, no dia 22 e 23, são publicados pré-avisos de greve dessa greve cirúrgica. O que quer dizer que estes sindicatos romperam a unidade que tinham com os restantes sindicatos todos. 

    Estas coisas da lealdade, da frontalidade e da honestidade são valores caros aos dirigentes sindicais, ou deveriam ser, ainda por cima num processo em que não foi fácil de agregar objetivos comuns, objetivos de coisas a alterar e reivindicar e objetivos de articulação de luta, isso não é fácil, há um grande esforço de todas as partes e, a certa altura, estes dois sindicatos entendem caminhar sem consenso com os restantes, sem qualquer discussão e romper o acordo estabelecido para um processo autónomo. O que é uma coisa complicadíssima porque hoje, a esta distância, é muito claro o resultados dessas greves de longa duração – e não estou a qualificar, estou só a analisar os factos.

    Primeiro, o resultado final deste processo de luta em relação à carreira de enfermagem foi uma enorme deterioração do valor económico da carreira. Segundo, e que ainda hoje se está a pagar caríssimo, tem a ver com as formas de luta: a partir das greves cirúrgicas, as instituições, como era insuportável manter uma greve de longa duração, cerca de um mês, apresentaram contrapropostas de serviços mínimos que eram quase os máximos. Ainda hoje, passados estes anos, sempre que os sindicatos de enfermagem decretam greves, designadamente o SEP, que é aquele que decreta mais e com mais regularidade, o Tribunal Arbitral continua a propor o acrescento de intervenções de enfermagem como serviços mínimos e a aumentar o número de enfermeiros para os assegurar.”

1999
  • Primeiro curso de Licenciatura

    “Fui uma das pessoas que fez o primeiro curso de Licenciatura em Enfermagem, com o n.º 33. Eu sou duma geração onde não se tem muita noção disso, mas nós queríamos ir para a Enfermagem, independentemente da formação em si, de ser bacharelato ou licenciatura. Só depois de acabar o curso e de percebermos onde nos metemos, em termos de profissão, da parte laboral, de carreira, é que nos apercebemos da diferença entre ser bacharelato e licenciatura.

    Quando decidi ser enfermeira, não tinha muita noção disso. Se a enfermagem fosse um bacharelato, todos – éramos 60, na altura – todos teríamos ido, certamente. Depois, ao longo do curso, percebemos que era uma licenciatura e o que isso podia implicar, ou deveria implicar, mas, na altura em que decidi entrar, não tinha noção do benefício que era ser uma licenciatura.

    Em termos de prática de enfermagem, também não foi diferente por ser uma licenciatura. Foi em termos de implicações ao nível da carreira, e de percebermos, pela parte científica, o reconhecimento que há em termos de licenciatura e que nos torna mais diferenciados.

    Na prática, no cuidar do outro, naquilo que é a nossa profissão, não muda. Na prática, no cuidado do doente, eu acho que faria o mesmo, teria o mesmo investimento, iria procurar a mesma parte científica e continuar a justificar tudo o que faço cientificamente, mesmo que não tivesse uma licenciatura. 

    Não conheço ninguém que não tenha feito licenciatura ou o complemento. Na prática, daquilo que me apercebo, e eu conheço muitos colegas que fizeram o complemento a seguir, não ficaram melhores enfermeiros, mas ainda bem que o fizeram, porque igualaram a profissão. No entanto, comparando uma pessoa que tem um bacharelato há muitos anos, com muita experiência, consegue dar uma melhor resposta do que uma pessoa acabada de sair da licenciatura, porque os papéis e os cursos e estudar é importante, mas aquilo que faz o enfermeiro é a prática e o investimento de cada um.

    As cadeiras não eram muito difíceis, mas o que a licenciatura em enfermagem tinha eram os estágios e, nos estágios, tínhamos de fundamentar tudo o que fazíamos. Eu andei numa escola que já não existe, a Francisco Xavier, e tínhamos de viver para aquilo. Em casa, tinha de haver tanto ou mais investimento porque tinha de ser tudo preparado para os estágios e para as aulas práticas. O exame da cadeira, em si, não era difícil, mas depois tínhamos de aplicar tudo. Era um curso muito exigente, com pessoas muito exigentes, às vezes até demais.

    Hoje em dia, os miúdos com 16, 17, 18 anos, pressionados pela sociedade, pela família ou por si próprios, querem fazer uma licenciatura e alguns deles decidem pela enfermagem. Antigamente, o que queriam era ser enfermeiros. Agora, acho que já não é tanto uma questão de vocação.”

1998
  • Ordem dos Enfermeiros

    “Eu estive envolvida no processo na sequência da vivência que tinha tido enquanto dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, e depois, com a criação da Ordem, integrei o primeiro mandato, no Conselho Jurisdicional Nacional.

    O processo de criação da Ordem foi interessantíssimo porque mobilizou-nos a todos de uma forma… tínhamos uma expectativa muito grande de autorregulação, e o culminar da progressão da enfermagem seria naturalmente a criação de uma Ordem Profissional. Eu não estive na comissão instaladora, mas estive nos primeiros órgãos da Ordem.

    Se me perguntar se foi um período muito agradável, foi, pela aprendizagem, mas foi um período muito duro de trabalho. O Conselho Jurisdicional é aquele de que mais posso falar porque foi aquele que integrei e que conheço melhor. Teve um trabalho hercúleo e, para muitos de nós que íamos do movimento sindical, não imaginávamos que era aquilo que nos esperava. Acabámos por encontrar uma área que, de todo, era uma continuidade sindical, o que hoje ainda é uma confusão na cabeça de muita gente.

    A Ordem não é uma estrutura sindical nem uma estrutura de defesa dos direitos dos trabalhadores, a Ordem é um organismo onde os enfermeiros assumem, perante a sociedade, que aquela comunidade, aquele grupo profissional, deontologicamente garante aos cidadãos cuidados de enfermagem de qualidade e garante que os pratica de forma correta, com alto profissionalismo, dentro de um quadro ético muito rigoroso.

    Foi essa parte ética que eu trabalhei mais. Trabalhámos muito o código deontológico, aliás, fizemos três publicações de revisão e interpretação, com muitos pareceres. Foi um período de muito trabalho; vínhamos para casa, no fim das reuniões, e trazíamos, na carteira, uma tonelada de pareceres para dar que íamos preparando todos, em casa, e quando nos reuníamos eram discutidos, burilados e melhorados, e ficavam depois em acesso a quem os solicitava e a toda a comunidade de enfermeiros que tivessem interesse em consultá-los.

    Obviamente que hoje há uma crítica muito grande ao trabalho feito pela Ordem nesse princípio, mas só estamos aqui porque alguém, um grupo muito grande de enfermeiros, foi o pioneiro a partir pedra e levou aquilo que se preconiza para a profissão, que foi tão criticado. Neste momento, já começa a ser reconhecido novamente que o caminho que traçámos era o correto, era por ali o caminho.

    A necessidade de haver uma Ordem sempre foi falada, mas, na altura, quando integrei a direção do sindicato havia tanta coisa que era preciso fazer, havia tanto trabalho, esse tal trabalho que, como dizia a Enf. Maria Augusta, fomos conseguindo com as negociações.

    Da análise que eu fiz, quem cria a Ordem e quem lança a primeira pedra são pessoas vindas do movimento sindical, é verdade, e muito interessantemente, fizeram uma distinção perfeita entre o que é o trabalho do sindicato e o que é o trabalho de uma Ordem e fizeram-no de uma forma excelente. Em abono da verdade, eu tinha alguma dúvida se o conseguíamos fazer e o facto é que foi feito de uma forma muito nobre. A preocupação de quem estava e de quem esteve nos primeiros anos da Ordem, nos primeiros mandatos, até ao último mandato da Enf. Maria Augusta, em 2009, a preocupação da Ordem era criar as bases, os fundamentos da autorregulação da profissão e a garantia ao cidadão de que esta profissão garantia cuidados de enfermagem de qualidade.

    Qualquer enfermeiro com a sua cédula profissional era um garante da Ordem e sempre que algum prevaricasse, o cidadão podia reclamar e a Ordem iria analisar se o cidadão estava a ser prejudicado ou não, se havia algum motivo para chamar à atenção aquele enfermeiro ou não.

    Os corpos sociais da Ordem atuais têm muito um trabalho sindical, que se confunde com sindicatos e que prejudica a normal negociação com o poder, claramente, porque uma Ordem não tem essa função. Uma Ordem cria os princípios orientadores, cria as diretivas para a profissão, cria os pareceres, os enunciados de posição, aquilo que diz que na profissão de enfermagem é assim. Os sindicatos vão agarrar nesse core de informação da Ordem para a profissão e vão incorporá-lo na sua negociação. Isto tem lógica e a Ordem pode incorporar muita informação do sindicato até para perceber até que ponto o caminho que está a gizar para a profissão é útil para as negociações. Esta confusão, esta apropriação sindical, foi prejudicial à enfermagem e aos enfermeiros.”

1996
  • Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros (REPE)

    “Na base da criação do REPE há um episódio em particular. Um rapaz caiu de uma árvore, partiu o braço e foi internado no serviço de ortopedia do Hospital de Faro. A fratura tinha uma ferida, puseram gesso no braço e ele acabou por morrer com uma gangrena. Foi um enfermeiro que alertou para o facto de os dedos não terem circulação e, quando abriram o gesso, aperceberam-se da gangrena. O rapaz ainda foi para o Hospital de São José, mas morreu.

    O Hospital de Faro tinha aberto há dois ou três anos e isso caiu como uma bomba, a morte por negligência. O processo teve tanta influência que houve enfermeiros que fugiram para Espanha, a monte, porque se gerou uma onda enorme de contestação. Por exemplo, os professores organizavam os miúdos da escola e os miúdos entravam em fila pela urgência do hospital a chamar assassinos aos médicos e aos enfermeiros.

    Para dar apoio aos enfermeiros, eu e outra dirigente do SEP, a Augusta, disponibilizámo-nos para ir para o Algarve para fazer acompanhamento de proximidade dos processos, inclusive processos-crime. Uma organização destas nunca tinha acontecido e, no hospital, era necessário distribuir informação, reunir com os enfermeiros e, por isso, havia reuniões diárias, manhãs, tardes e noites. Fizemos uma série de ações na rua, para consciencializar as pessoas do que tinha realmente sucedido.

    Mas não se pense que o sindicato foi recebido de ânimo leve por parte da administração. Ao pedido de uma sala para espaço de reunião, o que nos foi dado foi um espaço junto à morgue do Hospital de Faro. Era aí que estávamos instaladas, que recebíamos as pessoas.

    Ao mesmo tempo, era preciso lidar com a revolta das pessoas, com a tentativa dos médicos se tentarem descartar e fazerem cair a responsabilidade sobre os enfermeiros. As consequências só não foram piores porque, apesar de tudo, havia alguns registos de enfermagem, registos que, à data, não eram obrigatórios nem valorizados. Esses registos, apesar de muito simples, permitiram montar a defesa dos enfermeiros. O caso foi para tribunal e o sindicato disponibilizou o apoio contencioso. Os enfermeiros que foram defendidos pelo advogado do SEP não sofreram consequências, e entre os enfermeiros defendidos por outros, alguns foram suspensos do exercício durante algum tempo.

    Neste caso, o que se constata é que o médico raramente estava no hospital, e quando os enfermeiros alertavam que o rapaz estava febril, que a febre não baixava, contactavam o médico por telefone e normalmente o que o médico dizia era para lhe ser administrada uma aspirina. Umas vezes isso aparecia nos registos e noutras não, mas a verdade é que essa era a norma. Os médicos não estavam presentes e eram os enfermeiros que tinham esta responsabilidade.

    Quando isto aconteceu, percebeu-se que os enfermeiros, à data, tinham intervenções autónomas e intervenções interdependentes. A administração da terapêutica, por exemplo, é uma ação interdependente porque decorre da prescrição de outro. Mas, a partir do momento em que administram a terapêutica, é da sua responsabilidade.

    O que este processo permitiu foi tomar consciência de que devia estar na lei os direitos e deveres dos enfermeiros, o que é a enfermagem, o que é um enfermeiro, o que é um enfermeiro especialista e quais são as áreas de atuação da enfermagem. A outra questão é que os enfermeiros trabalham numa organização, com superiores hierárquicos, no caso a enfermeira diretora, e todas estas práticas eram conhecidas. Em última análise, o responsável último deste caso devia ser o conselho de administração, pela ausência de condições de trabalho dos enfermeiros.

     Todo este processo permitiu começar a construir o REPE, sendo que isso já era uma exigência dos enfermeiros desde o Congresso de Enfermagem de 1973. Acabou por ser publicado em setembro de 1996.”

1991
  • Vínculos precários

    “A questão dos vínculos precários não se fica só pelos anos 90, ou seja, ciclicamente estamos com a problemática dos vínculos precários, até agora associados à carência de enfermeiros. Nos anos 90, que foi quando eu iniciei a profissão, em final de 1988, já estava em movimento a resolução dos vínculos precários que, na altura, eram os tarefeiros.

    Eu comecei a trabalhar como tarefeira e havia, ao mesmo tempo, a questão da regularização dos vínculos, a contagem de tempo de serviço a esses profissionais que estavam nos serviços a assegurar as necessidades permanentes com subordinação hierárquica, e essa luta esteve sempre presente.

    Nessa altura, tomou uma proporção muito grande pelo movimento que o SEP viria a desenvolver junto de jovens profissionais e estudantes. O objetivo era catalisar jovens que fossem delegados sindicais, simpatizantes do SEP, e mobilizá-los no movimento contra os contratos de trabalho precários, pela salvaguarda dos direitos e a exigência de contratação por contrato administrativo de provimento.

    Esses contratos eram uma forma de contratação que salvaguardava os direitos aos jovens que começassem a sua profissão, não estando vinculados em definitivo ao quadro das instituições – na altura, ainda havia as instituições com quadro. Lembro-me que o SEP criou comissões de jovens profissionais em todas as direções regionais.

    Veio 1991, com a carreira de Enfermagem, em que se regularizaram algumas contagens de tempo e possibilidades de se contar tempo aos enfermeiros que eram tarefeiros, mas como as instituições continuaram numa política de contratação precária, estes movimentos foram criando volume, pelas dificuldades que os próprios jovens tinham em arranjar emprego. Chegou a haver, inclusivamente, alguns enfermeiros no desemprego.

    Houve algumas iniciativas muito interessantes. Lembro-me dos arrumadores, no Hospital de São João, eram enfermeiros a falar com a população como se fossem arrumadores de carros, foi uma iniciativa do SEP com as comissões de jovens do Porto.

    Fez-se tanta coisa, desde bancas de esclarecimento na Praça do Rossio, em que fazíamos atendimento… Normalmente eram iniciativas em que a população sentia muito interesse. Manifestações, a caravana em que juntámos várias regiões que foram agregando os jovens e viemos todos para Lisboa para uma manifestação.

    Em todas as instituições do país havia este problema. Inclusive, uma das conquistas que esse movimento conseguiu foi a abertura por parte do Ministério da Saúde de um concurso nacional de admissão para Contrato Administrativo de Provimento, para 3500 vagas, e em muitas instituições as vagas não chegavam para os enfermeiros que lá estavam, o que significava que havia um leque de enfermeiros que seriam despedidos. Estas situações foram sendo ultrapassadas, mas os problemas foram sempre existindo porque as instituições foram sempre mantendo uma política de contratar, ou não contratar, com vinculação precária.

    Há um objetivo central nestas movimentações que fizemos que foi garantir que o tempo a vínculo precário fosse sempre contabilizado para todos os efeitos legais. Eu diria que depois da contratação definitiva dos enfermeiros foi o objetivo maior, a questão de o tempo ser todo contabilizado, ou seja, o facto de as pessoas terem estado em vínculo precário não determinou a perda do tempo de trabalho.

    Outro dos objetivos que se conseguiu foi a aprovação, na Assembleia da República, em 1998, de uma resolução a admitir a carência de enfermeiros e a necessidade de haver um plano de formação de enfermeiros para fazer face às necessidades no momento e no futuro, ainda que tenhamos ainda hoje carência.”

  • DL 437/91 da carreira e Avaliação de Desempenho

    “Como dirigente do sindicato, participei na negociação do DL 437/91 e depois participei muito ativamente na implementação das medidas decorrentes deste decreto. Os colegas novos não têm noção porque têm a ideia de que a carreira deles está parada e isso era exatamente o que se sentia no final dos anos 80 em relação à carreira que existia.

    Durante os anos 80, saíram quatro decretos sobre a carreira de enfermagem. O primeiro foi em 1981, outro em 1983, outro em 1987 e outro em 1989, decorrente das alterações que entretanto tinham sido feitas pelo novo sistema retributivo.

    Em 1989, foi publicado o que ficou conhecido como o Novo Sistema Retributivo, que é a alteração da remuneração e da organização das remunerações de toda a administração pública e que depois teve reflexos em todas as carreiras da administração pública. Em 1990, sai um decreto a adaptar a carreira de enfermagem a esta nova realidade do sistema retributivo, com regras.

    É a partir daí que se começa a verificar que era necessário ver para além disto e haver uma alteração mais profunda da carreira de enfermagem e faz-se uma espécie de contrato de promessa. Começam aí a desenvolver-se as negociações com os sindicatos de enfermagem para haver a alteração da carreira, que culmina com a publicação do DL 437/91, de 8 de novembro. E com isso a carreira ficou mais estável.

    A Avaliação de Desempenho é outro dos pilares. Nestas coisas, o sonho tem de ser sempre maior do que o homem, para se poder avançar. A Avaliação de Desempenho é algo completamente inovador, ainda hoje é uma coisa de que não nos apropriámos bem, foi uma das coisas de que a profissão não se apropriou, não percebeu o benefício. 

    O sistema, na altura, foi profundamente inovador. Nós tínhamos uma classificação, com itens, basicamente o que se faz hoje, mas com mais graduações. Entretanto, as nossas líderes acharam que em vez de classificação devíamos ter uma avaliação de desempenho, até porque se começava a falar dos objetivos e trabalhar por objetivos. Não sei bem como surgiu a ideia a quem a teve, mas fizemos uma proposta. No nosso país, a companhia das águas de Lisboa, tinha um sistema de avaliação, eram os únicos, e nós fomos beber a eles alguma inspiração.

    Neste sistema de avaliação tínhamos de estabelecer objetivos, estabelecer atividades para atingir objetivos, não era um sistema de avaliação por resultados, era um sistema que assentava no desenvolvimento do indivíduo, do desempenho de cada indivíduo, considerando-se que se aquele indivíduo se desenvolvia, os resultados para o serviço seriam sempre positivos. Tinha a ver com os objetivos do serviço, mas tinha muito mais a ver com os padrões de qualidade (que nessa altura ainda não estavam publicados) adequados para a qualidade do serviço que se oferecia. Os objetivos eram estabelecidos nesse sentido, não tinha a ver com resultados e ou as pessoas conseguiam ou não conseguiam, só havia duas avaliações qualitativas. Acho que foi nisso que os enfermeiros tiveram dificuldades. Ainda hoje temos dificuldade em definir objetivos e trabalhar por objetivos, incluindo os conselhos de administração.

    Na formação que a EPAL (penso que era isso) nos foi dar, eles tinham uma folha de avaliação, uma folha A4, com os objetivos a desenvolver, uma série de atividades, tudo numa folha A4. Os enfermeiros arranjaram um relatório de atividades, que tinha de ser feito de 3 em 3 anos, com muitas regras e formatações, como se fosse um trabalho para publicar, o que complicou logo todo o processo. A maioria das instituições nunca pôs em prática essa avaliação, foi uma utopia.

    Os enfermeiros não gostaram, por exemplo, de ser todos iguais. ‘Havia aqueles que são ruins, que são a escumalha, mas depois eu sou igual ao meu colega do lado?’ E, de facto, não são. Há pessoas que fazem parte da poeira dos dias e há os outros que conseguem dirigir aquela poeira numa determinada direção e esses não podem ser avaliados como os outros.”

  • Câmaras de Fluxo de Ar Laminar

    “Eu trabalhava no Instituto Português de Oncologia (IPO), que tinha alguns serviços inovadores e um deles era uma consulta de clínica geral para o pessoal. Quando entrei nesse serviço, eu e uma colega resolvemos fazer um levantamento da morbilidade do pessoal. Eram cerca de 2000 funcionários e tinham quase todos uma ficha nesse serviço, onde eram relatados os seus episódios clínicos, queixas, etc.. Fizemos o levantamento fora das horas normais de expediente, para não prejudicar o funcionamento do serviço.

    Ficámos tão entusiasmadas que, nas primeiras Jornadas de Saúde Ocupacional de Beja, em 1987, resolvemos comunicar os resultados deste nosso trabalho. A assistência ficou muito chocada, mesmo o próprio diretor do IPO, porque não tinha a noção de que no hospital havia tantos riscos. Foi criado um grupo de trabalho para estudar a manipulação dos citostáticos e a organização do trabalho. O que se preconizava era a existência de Câmaras de Fluxo de Ar Laminar e tinham de ser adquiridas. Havia um médico que tinha muito bons relacionamentos com a Fundação Gulbenkian e conseguiu-se.

    Na altura, o princípio era que quem preparava, administrava, mas aqui era ao contrário: alguém estava nas câmaras a preparar, e depois os outros administravam, e na administração os enfermeiros tinham de se equipar, com máscara, viseira, bata. As câmaras foram instaladas nos serviços de medicina e no hospital de dia, porque era aí que se administravam citostáticos. Tudo isto despertou a curiosidade dos outros hospitais, nomeadamente dos outros dois IPOs, do Hospital de Santa Maria, e outros onde se aplicavam citostáticos. Fizeram obras, esforços e as adaptações necessárias. A partir daí também se começou a falar do risco químico para os enfermeiros. O sindicato teve um papel importantíssimo porque começou a fazer formação a enfermeiros que preparavam e administravam citostáticos e que implicava essa dicotomia, um preparava e um administrava. Eu e uma colega minha andámos a correr o país a dar formação, a pedido dos hospitais.

    Isto teve impacto no Decreto-Lei 437/91, da carreira de Enfermagem. Foi o grupo de trabalho dos recursos humanos que alertou a tutela para a existência de risco e isto culminou com a negociação do sindicato sobre a carreira.

    No Decreto-Lei 437/91 aparece uma redução do tempo de aposentação e são regulamentadas as condições de especial risco oncológico e psiquiátrico, o que deu alguma luta porque alguns achavam que não era só oncológico e psiquiátrico, era em todo o lado, mas foi o que se conseguiu na altura e foi muito inovador. Na sequência disso, os enfermeiros que trabalhavam nesses serviços tiveram a redução de uma hora de trabalho e mais férias, o que ainda hoje se mantém.”

1988
  •  

    “Os enfermeiros do Norte tiveram necessidade de encontrar o norte para a profissão numa organização do Sul.

    Havia quatro sindicatos regionais: o Sindicato da Zona Norte com o enfermeiro Azevedo, o Sindicato da Zona Centro com o enfermeiro Fernando Correia, o Sindicato da Zona Sul e Açores e o Sindicato da Madeira. Fruto da intervenção dos enfermeiros da zona Sul, com quem trocávamos impressões nos congressos, formação e encontros, percebíamos que havia uma organização e intervenção sindical diferente. Os sindicatos eram praticamente as únicas organizações que tinham suporte para pensar a profissão, pensar em condições de vida e de trabalho.

    O Sindicato da Zona Norte, do qual eu fui sócio durante 8 anos, desde que fui enfermeiro, era um sindicato que se reunia para jogarmos pingue pongue e jogarmos às cartas. Íamos para a sede assistir a alguma formação de atualização de conhecimentos, mas a intervenção sindical era muito centrada no presidente e não havia dinâmica sindical que resultasse num sindicato forte e com sustentação de base. Houve várias tentativas de alternância, mas o mesmo senhor ganhava sempre. Vai daí que os enfermeiros se organizaram e pediram ao sindicato dos enfermeiros da zona Sul que alargasse o seu âmbito e passasse a ser um sindicato nacional. Este pedido, associado a outras regiões do país, deu origem à criação do sindicato dos enfermeiros de expressão nacional.

    Eu fiz parte dessas primeiras reuniões. Sou uma pessoa que acredito muito nas pessoas e acreditava que era possível dar a volta por dentro no Sindicato dos Enfermeiros do Norte, e portanto tentei várias vezes falar com as pessoas da direção e explicar que o modelo de sindicalismo devia ser diferente e que tínhamos de nos entender de forma a que a profissão, organizada num plano nacional, fosse mais reivindicativa, tivesse mais expressão e conseguisse mobilizar, o que veio de facto a acontecer com o Sindicato dos Enfermeiros Portugueses. A partir da sua criação, a expressão nacional da luta dos enfermeiros foi uma evidência e deu que, até 1999, tivéssemos conseguido o estatuto profissional, uma Ordem dos Enfermeiros e uma carreira cuja paridade com outros profissionais, nomeadamente os médicos, era praticamente sobreponível – uma carreira que orgulhava os enfermeiros. 

    Foi basicamente isto que esteve na sua origem. Eu ainda acreditei, reuni 4 horas num diálogo com o enfermeiro Azevedo para que ele me desse motivos para não me dessindicalizar porque, até aí, eu fazia todas as lutas do SEP mantendo-me sindicalizado no Sindicato do Norte por estar na tentativa de aproximação. Aliás, mesmo quando me desvinculei e, mais tarde, acabei por ser dirigente do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses, tentei sempre, em vários momentos cruciais para a profissão, tentei sempre fazer alguma aproximação. O que foi muito difícil.

    O que me mobilizou para a luta da profissão foi numa das comemorações do Dia Internacional do Enfermeiro, era então ministra Leonor Beleza, e o enfermeiro Azevedo pediu-me se podia estar lá porque havia umas enfermeiras que iriam perturbar a presença da ministra. Qual foi a perturbação? Foram duas enfermeiras, que eu hoje conheço bem, uma dela que mais tarde veio a ser da primeira lista de dirigente do SEP, e uma delas grávida; essas enfermeiras aproximaram-se da senhora ministra e a enfermeira disse-lhe, categoricamente, que estava grávida e que a instituição onde trabalhava não lhe dava direito a usar a licença de maternidade. A ministra ficou perturbada com a questão e dirigiu-se ao enfermeiro Azevedo porque nem sabia que isso se estaria a passar, na região Sul isto não se passava. Na altura, a ministra disse à enfermeira que ela ia ter a criança com todos os direitos. 

    Esse processo da luta dos chamados contratados, que não tinham direitos nenhuns, fruto da inércia do sindicato regional, eram questões que não eram resolvidas. Era um sindicato que tinha uma intervenção pouco direta e que não envolvia os enfermeiros.”