O enfermeiro António Ferreira, do Centro Hospitalar Universitário de S. João, fala-nos das consequências desta pandemia na saúde dos enfermeiros. Os problemas que já existiam e que permanecem e qual o caminho a tomar.
Mudar de Vida
Atravessamos um período em que a sociedade e o Estado, como seu representante democrático legítimo, terão que fazer escolhas. Escolhas essas que, pressupõem clarividência sobre que tipo de sociedade queremos para o futuro; que tipo de valores fundamentais terão de imperar nesta nova sociedade a que nos propomos construir.
Queremos que:
- Seja mais ou menos desigual.
- Respeite ou não os direitos fundamentais do ser humano.
- Respeite ou não o direito de cada um ao trabalho, de uma forma justa; digna e permanente; em que a contribuição financeira seja ajustada ao contributo social e económico de cada um.
- Permita ou não situações de assimetria e descriminação inaceitáveis, intoleráveis numa sociedade que se diz civilizada e solidária.
Quando o governo tiver que tomar decisões é fundamental que os critérios, estejam alinhados com os objetivos de um desenvolvimento alicerçado numa maior justiça social e que tenha em consideração uma adequada repartição da riqueza por forma a perspetivar e impulsionar a construção de uma melhor e mais profícua sociedade.
Estes desejos e objetivos gerais são transponíveis para a profissão de enfermagem e terão de uma vez por todas tornarem-se a génese, a matriz e os alicerces basilares da classe. O alcançar destes pressupostos, terão uma influência inequívoca na motivação e proatividade dos profissionais com resultados visíveis e notórios na saúde de toda a população.
Nestes tempos conturbados da pandemia; dados preliminares de um estudo desenvolvido pelo centro de investigação em tecnologias e serviços de saúde, detetaram um aumento de cerca de 40% nos níveis de ansiedade dos profissionais de saúde. Ainda não se conseguiu identificar especificamente qual o fator que mais efeito teve neste aumento. Parece haver um peso substancial relacionado com o número excessivo de horas de trabalho a que os profissionais são submetidos no contexto da pandemia e à qualidade e quantidade percecionada como insuficiente dos equipamentos de proteção individual. De acordo com o estudo, numa escala de 0 a 10, o medo dos enfermeiros de se infetarem é em média de 7,6; valor que sobe quando se fala da família do profissional de saúde, neste caso o valor médio sobe para uns inaceitáveis 8,9. Será esse receio, que fez com que os enfermeiros tenham voluntariamente tomado a decisão de sair de casa para protegerem o seu agregado familiar. Esta atitude aumentou drasticamente os sintomas depressivos pela angústia de não estarem junto da família, e é possível e talvez incontornável que estes sintomas sejam agravados se se prolongar o tempo da ausência.
O inquérito inferiu que apenas uma pequena percentagem dos enfermeiros procuram apoio psicológico em virtude de estarem tão empenhados no trabalho que têm que desempenhar, de uma forma tão intensa e afincada.
O facto de estarem na primeira linha do combate contribuiu muitas das vezes para que o seu foco se centre unicamente e prioritariamente no combate ao vírus e na salvaguarda da sua própria saúde e no tratamento a efetivar ao doente. Subvalorizando e subestimando os sintomas mentais e psicológicos que possam estar a sofrer. Esta mitigação e desvalorização poderá repercutir-se a médio ou longo prazo na saúde mental dos enfermeiros de uma forma imprevisivelmente nefasta.
Nesta pandemia ficou bem expresso e teve grande relevo e visibilidade das manifestações mediáticas de reconhecimento, gratidão e solidariedade da população em geral, relativamente aos profissionais de enfermagem.
Todos agradecemos profundamente estas manifestações, mas gostaríamos que tudo isso se traduzisse numa retribuição justa, digna e adequada ao nosso exercício profissional, é desejável e pertinente que essa valorização e reconhecimento público permita alcançar o estatuto e a importância no seio da sociedade.
A consolidação deste estatuto permitirá capitalizar o argumento inequívoco que ao longo do tempo sistematicamente recorremos para reivindicar o estatuto de risco de penosidade inerente ao nosso exercício profissional. A assunção e reconhecimento deste estatuto permitirá alcançar ganhos concretos que sejam adequados, justos, dignos e compatíveis com a nossa importância no contexto do serviço nacional de saúde.