“As portas que Abril abriu.”
A frase icónica de Ary dos Santos continua, 50 anos depois, a ser atual. Mantê-la assim só depende de nós!
Branquear o passado é branquear a memória
O branqueamento que se pretende fazer das condições de vida dos portugueses antes do 25 de Abril é quase vergonhoso, e por isso importa lembrar que perto de 50% da população era analfabeta, registava-se uma elevada taxa de mortalidade infantil, não havia bens tão básicos como eletricidade, água, telefone ou mesmo casa de banho, o acesso ao ensino superior era quase exclusivo para a pequena elite abastada, a saúde era assegurada pelas chamadas caixas de previdência dos Jornalistas, dos Advogados, do pessoal da empresa Portuguesa das Águas Livres, das Companhias Reunidas de Gás e Eletricidade, do Pessoal dos Telefones e Porto, entre outras – e apenas para os trabalhadores destas empresas. Para os restantes, existiam as Casas do Povo e as Casas dos Pescadores.
Só após o 25 de Abril foram abolidas as restrições ao direito de voto baseado no género, ainda que o direito ao voto feminino estivesse já previsto desde 1931. Antes disso, as mulheres poderiam votar se fossem chefes de família e detentoras de habilitação secundária ou superior. Cidadãos analfabetos só poderiam votar se pagassem impostos superiores a 100 escudos.
A assunção das difíceis condições de vida e a mobilização de milhares de jovens para a Guerra Colonial foram responsáveis pela emigração de cerca de 1,7 milhões de portugueses, na sua maioria, para França. O serviço militar obrigatório, à data, atirou milhares de jovens para uma guerra que não compreendiam.
As “portas que Abril abriu”
Pensar, hoje, naquele Portugal, principalmente para quem nasceu após o 25 de Abril, é como estar a ver um filme mudo e a preto e branco.
Nos anos 90, pela primeira vez, as universidades portuguesas passaram a ser frequentadas por mais mulheres do que homens. Isso demonstra bem como evoluiu a sociedade portuguesa e como, em poucos anos, com a democratização do acesso à escola pública e ao ensino superior, se construiu o que é hoje reconhecido como as “gerações mais qualificadas de sempre”.
Foi a porta do acesso à educação que Abril abriu. É a porta da escola pública e do ensino superior público que não podemos deixar fechar, tampouco – que se mantenha entreaberta com propostas como o “cheque ensino”, o ensino convencionado, entre outras.
Na saúde, Abril também abriu portas. A Constituição da República, no art.º 64 – ponto 3, alínea c), determina que para assegurar o direito à proteção da saúde incumbe prioritariamente ao Estado, entre outros, orientar a sua ação para a socialização dos custos dos cuidados médicos e medicamentosos. E, para que todos estejamos em sintonia, socialização é o “ato ou efeito de socializar, ou seja, de tornar social, de reunir em sociedade. É a extensão de vantagens particulares, por meio de leis e decretos, à sociedade inteira. É o processo de integração dos indivíduos em um grupo”.
Ou seja, o que a nossa Constituição consagra é o acesso geral e universal à saúde, e que os custos desse serviço são pagos de forma solidária por todos os portugueses (Estado), através dos impostos que pagam. Esta solidariedade na partilha dos custos permitiu melhorar os indicadores de saúde, obter ganhos em saúde e democratizar o acesso, garantindo, por exemplo, o acesso a um tipo de medicamento e/ou tratamento inovador, ao tratamento de uma doença rara, a uma intervenção rápida através de meios próprios (por exemplo, um helicóptero permitindo salvar vidas e/ou diminuir a possibilidade de sequelas). Um serviço que as pessoas não pagam diretamente e assente na solidariedade do Serviço Nacional de Saúde.
Os doentes/utentes têm acesso a uma consulta, uma cirurgia ou um exame complementar de diagnóstico. Isso só acontece porque a prioridade está assente na situação do doente, ou seja, na decisão clínica. Esta foi a porta que Abril abriu.
O que não podemos permitir é que, por dificuldade no acesso devido a falta de investimento e suborçamentação crónica, as pessoas façam seguros de saúde e tenham de pagar cada vez mais do seu bolso para ter acesso à saúde. Hoje, a despesa em saúde por parte das famílias atingiu já os 29%, ou seja, apesar de pagarem impostos, ainda gastam mais cerca de 800€ por pessoa/ano. Uma barbaridade, principalmente se considerarmos que estes gastos são, e por ordem, em consultas de ambulatório e nestas, à cabeça, consultas na área da saúde mental, seguidas das de saúde oral, fisioterapia e próteses (óculos, etc).
Temos de garantir que o SNS que saiu de Abril responde a todas as necessidades dos portugueses até porque, tal como a evidência do Serviço Nacional de Saúde inglês demonstra, o recurso ao privado diminuiu a qualidade. A máxima “benefícios privados, riscos públicos” aplica-se na perfeição, e o ano da pandemia, demonstra-o.
Uma última nota. As infraestruturas de eletricidade, telefones e água foram construídas com o dinheiro dos contribuintes. As empresas privadas que hoje as exploram não gastaram um cêntimo a construí-las. Significa que os lucros milionários que hoje têm e os dividendos que pagam aos acionistas, na verdade, deveriam ser pagos aos portugueses.
Nestes e noutros casos, os privados não investem um único tostão na pesquisa científica, na construção dos protótipos, no início da sua utilização, etc. Só quando percebem que aquela invenção/produto dá lucro é que se interessam por ela. Foi assim com a internet, foi assim com os componentes dos telemóveis e foi assim com a vacina da COVID-19, que resultou do investimento público, mas cuja patente ficou nas mãos dos privados.
É por estas e tantas outras coisas que temos de continuar a cuidar da Democracia e a exercê-la.
As portas que Abril abriu não podem ser encerradas, nem tampouco estar apenas entreabertas. E isso só depende de nós, de ti, de todos!