24 Abril, 2020
25 de abril, todos os dias
Comemoramos este ano 46 anos do Portugal democrático. Estamos a dois de igualar os 48 que vivemos sob a ditadura fascista de Salazar.

 

Foram 48 anos de um Portugal vestido a preto e branco, de um poder único e autoritário, com elevadas taxas de analfabetismo e de mortalidade infantil.

A fome grassava entre a população e só não era mais grave porque a ruralidade permitia que os portugueses arrancassem da terra a subsistência.

As mulheres ainda que trabalhassem de sol a sol, tal como os homens, eram consideradas seres menores não tendo direito a votar, para sair do país tinham que ter autorização dos maridos e, por exemplo, as enfermeiras e as professoras não podiam casar.

A taxa de mortalidade materna era em 1960 de 115,5%ooo por 100.000 nascimentos e ter muitos filhos era quase uma obrigatoriedade face à elevada taxa de mortalidade infantil que já referimos.

O acesso a cuidados de saúde era praticamente inexistente e são célebres os hospitais das misericórdias para os indigentes, a maioria da população portuguesa. A escolaridade era quase exclusiva para os homens que na sua maioria faria apenas a 4 ª classe.

Na sua maioria as pessoas morriam nos locais onde tinham nascido e onde viviam a sua curta vida. A esperança média de vida de um homem português era de 60 anos e de uma mulher de 66. Mas com que qualidade de vida?

Num país profundamente católico, a Igreja assumia-se como mais um dos tentáculos do fascismo doutrinando os fiéis nos benefícios de viver sobre a ditadura, no papel que cabia a cada cidadão e, principalmente, inculcando no povo o temor a Deus, aquela figura que está em todo o lado, vê e sabe tudo. Para sentir o poder de Deus era exigido que todos fossem “bons alunos”.

Para os menos resignados, para os que fizeram objetivo da sua vida lutar contra o fascismo, lá estava a polícia política – a tenebrosa PIDE – que prendia, torturava, desterrava e matava. Todos os que tivessem a ousadia de expressar opinião diferente, de lutar pelos seus direitos, de exigir melhores condições de vida e de trabalho entravam para a lista negra da PIDE e ficavam sujeitos à sua perseguição ou até dos seus familiares.

Finalmente a guerra colonial onde morreram milhares e milhares de jovens portugueses que sem opção partiram para uma guerra injusta e perdida à partida. Ficam na história as mensagens deprimentes dos jovens soldados por altura do Natal, nos vários teatros de guerra – Angola, Moçambique, Guiné – e o regresso de outros tantos milhares estropiados física e mentalmente ou os que nunca regressaram e que às famílias foi impedido que lhes prestassem um último adeus.

Todas as famílias portuguesas com filhos homens viviam com o medo do momento em que os veriam partir para a guerra. A alternativa era darem “o salto” e emigrarem. Para todos os efeitos seria sempre uma perda.

“Este parte, aquele parte e todos, todos se vão. Galiza ficas sem homens que possam cortar teu pão. Tens em troca órfãos e órfãs, tens campos de solidão, tens mães que não têm filhos, filhos que não têm pai. Coração que tens e sofre, longas ausências mortais, viúvas de vivos mortos que ninguém consolará”. Assim cantava Adriano Correia de Oliveira.

Um país onde existiam um punhado de ricos, latifundiários e industriais, que utilizaram o poder instalado para obter e acumular lucro. A distribuição da riqueza por quem a produzia, os trabalhadores, não estava na génese destes patrões e assim se promovia a pobreza mas, sobretudo, a gratidão – “não pagam o que devo mas estou grato” – e, outra vez a subjugação – a Deus, ao ditador Salazar e aos não menos ditadores, aos patrões.

Ao final de 48 anos e após algumas tentativas falhadas, finalmente a Revolução no dia 25 de abril de 1974.

 

A luta persistente de alguns tornou-se numa conquista de todos.

A vida tal como a conhecemos hoje não seria possível sem o 25 de abril de 1974.

Ao longo destes 46 anos já passámos por vários momentos difíceis enquanto povo. São exemplo disso as 3 intervenções do Fundo Monetário Internacional. Mas a nossa capacidade de nos renovar e reinventar para os ultrapassar foram sempre menos dolorosas porque em 74 um grupo de militares nos encheu de esperança e de responsabilidade. Sim, com o 25 de abril deram-nos a possibilidade de escolhermos e de construirmos o futuro que queremos para nós e para o país.

 

As comemorações do 25 de abril do 2020 acontecem, também, em mais uma situação difícil.

Pela primeira vez em democracia vamos comemorá-lo sob o Estado de Emergência.

O aparecimento de um vírus apenas visível ao microscópio atirou-nos para um confinamento que ninguém pensava ser possível. Um vírus que tão pouco é um ser vivo mas que nos obriga a refletir que não nos podemos comportar como ditadores neste planeta e que somos tão frágeis como qualquer outra espécie animal.

Os tempos que vivemos são e devem ser de solidariedade, de fraternidade e de profundo humanismo. Afinal, os valores que construíram a Europa e a reconstruíram após as grandes guerras mundiais. Os valores que incentivaram e incentivam gerações de portugueses a lutarem pela liberdade e pela democracia.

É por tudo isso que a polémica em torno das comemorações do 25 de abril não faz sentido.

Principalmente quando analisamos as justificações que são avançadas. A Assembleia da República, onde vão acontecer, não é a casa dos deputados, é a nossa casa. Os deputados não foram ali colocados autocraticamente ou por sucessão dinástica. Foram eleitos e só o foram porque aconteceu o 25 de abril.

Quem tenta justificar a sua não-presença com a suposta ideia que “temos que dar o exemplo porque aos portugueses está a ser pedido isolamento social” deveria pensar duas vezes. Os portugueses não são mentecaptos e, mais, quando todos sabemos que o país tem que retomar alguma normalidade, nada melhor que o fazer, na Assembleia da Republica comemorando a democracia e honrando os cargos para os quais foram eleitos.

Mas também temos aqueles que tentam justificar a sua posição com “os muitos mortos e a impossibilidade de lhes prestarmos uma última homenagem”. Como sabemos, a participação dos familiares nos funerais dos seus entes queridos não está proibida. Mas importa realçar que comemorar o 25 de abril de 1974 é recordar os milhares de combatentes que morreram, sozinhos, trespassados por uma bala num qualquer campo nas ex-colónias. É recordar os que morreram em Portugal, a combater o fascismo. É recordar os que foram obrigados ao isolamento social nas prisões portuguesas, nos campos de concentração, no Tarrafal.

 

Comemorar o 25 de abril de 2020 faz ainda mais sentido porque este vírus traz-nos vários e difíceis desafios, no futuro muito próximo.

Vamos ter que conviver com ele e nos habituarmos a um novo normal.

A pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde vai continuar. E, hoje a nossa consciência sobre a importância do serviço público de saúde está, seguramente, mais enraizada. Já não é diferente ter um qualquer hospital perto de casa onde posso ir e cuja despesa é paga uma parte por mim, outra pelo seguro de saúde ou por um qualquer subsistema de saúde. Hoje queremos que os nossos hospitais públicos tenham os equipamentos e os profissionais que me possam salvar a vida, que me ajudem na recuperação ou equipas de saúde que a partir dos Centros de Saúde possam ir a minha casa.

Hoje sabemos melhor que ontem da importância da escola pública que se reinventa para que os nossos filhos possam ter aulas em casa.

Hoje sabemos da importância da Segurança Social que não serve só para pagar as reformas ou os subsídios de desemprego. Serve também para pagar uma parte do salário daqueles cujas empresas entraram em lay-off.

Hoje sabemos melhor e reconhecemos a importância dos trabalhadores públicos que limpam as nossas ruas, dos que asseguram as condições de higiene dos nossos hospitais, das forças de segurança, dos que trabalham a partir das suas casas em trabalho remoto.

Mas a pandemia atirou um milhão e cem mil trabalhadores para a situação de lay-off, perto de 200 mil requereram o apoio social e perto de 80 mil requereram o subsídio de desemprego.

A recente crise económica – 2011 e 2015 – foi de tal maneira avassaladora que apesar da recuperação dos últimos anos, ainda muito há a fazer. Os nossos salários estão longe da média da União Europeia e a luta por direitos tem que continuar.

Agora, e perante a pandemia, já vamos ouvindo, aqui e ali, as “vozes da austeridade”, contra o aumento dos salários, mas por aumento dos impostos, do aumento do horário de trabalho, da desregulação da legislação laboral tudo vai ser justificado pelo impacto do vírus na economia.

Temos que coletivamente dar as respostas porque esse também é o legado do 25 de abril de 1974.

Temos que exigir uma melhor distribuição da riqueza que todos produzimos. O resultado do nosso trabalho não pode continuar a encher desmesuradamente os bolsos dos acionistas das grandes empresas, algumas delas privatizadas recentemente. Foi por essa melhor distribuição que os nossos antecessores se bateram durante o fascismo.

Temos que exigir que neste mundo global seja repensado a localização da produção industrial. Não podemos aceitar que Portugal tenha ficado refém da China na produção de máscaras, equipamentos de protecção individual ou ventiladores. Por opção dos nossos governantes ou por orientações europeias a produção industrial deste tipo de equipamentos foi deslocalizado para aquele país porque a mão-de-obra é mais barata. O mesmo relativamente a outros equipamentos ou serviços que são produzidos na Índia, no Bangladeche, onde seja. Percebemos todos que em Portugal há capacidade criativa, técnica e de produção para reorientarmos a nossa indústria, e que isso pode significar mais empregos.

Temos que exigir que a esta capacidade criativa e de inovação reoriente a produção tendo como objetivo a criação de empregos verdes que permitam minimizar o impacto das alterações climáticas. E, para isso, é preciso continuar a exigir mais formação para os trabalhadores.

Temos que continuar a exigir que o Laboratório Militar, agora rapidamente reabilitado, reassuma o seu papel na produção de medicamentos genéricos que permita diminuir os gastos anuais com a especulação dos grandes grupos económicos farmacêuticos.

Temos que exigir mais apoios para a investigação.

Temos que exigir que o modelo económico em Portugal não esteja assente no turismo que apesar de ter vindo sempre a subir nos últimos 15 anos não melhorou o rendimento dos seus trabalhadores.

Temos que exigir que os grandes grupos económicos que têm as suas sedes em países como a Holanda para pagar menos impostos, o façam em Portugal. E, os deputados europeus que todos elegemos têm que ser, no Parlamento Europeu, de facto, o eco das nossas vozes nesta exigência.

Temos que exigir que não podem ser os trabalhadores e os pensionistas portugueses mais uma vez a pagar uma crise que, afinal, está a ter impacto em todos os países apenas porque os países mais ricos continuam a pretender ter lucro com os mais pobres.

Temos que exigir que as agências de rating se calem na sua destruidora missão de considerarem a economia de um país de mais, menos ou lixo assim-assim.

Temos que exigir que empresas como a Brisa ou outras concessionárias de auto-estradas que substituíram trabalhadores por máquinas paguem mais impostos e que acabe o pagamento de compensações ou de rendas. O Estado, somos todos nós e não podemos aceitar, continuar a pagar os lucros esperados destas empresas e que por qualquer razão deixaram de ter. O canibalismo do setor privado, que o querem ser mas com a garantia dos lucros, pelo público, pelo Estado, é perverso. É riqueza que produzimos e que deveria ser distribuída por nós mas é dada de mão-beijada a outros.

Temos que exigir melhores condições de trabalho para termos uma vida mais digna.

 

A construção do futuro, que depositaram nas nossas mãos há 46 anos, continua.

É por isso que comemoramos o 25 de abril em 2020, é por isso que o temos que comemorar todos os dias.