
TEMA CAPA
SERVIÇO NACIONAL DE SAÚDE, UM DOENTE CRÓNICO?
Pilar del Río afirma “se nos descuidamos um único momento o processo de privatização da saúde é imediato e está a acontecer em todo o lado”.
Mas na sustentabilidade do SNS cabe a ideologia? Cabem os profissionais? Cabe a eficiência?
Tentámos obter estas respostas milionárias junto de profissionais da economia, da academia, do jornalismo, da enfermagem. Conseguimos pistas. E algumas delas são unânimes.
©Ilustração de Rita Dâmaso
Tiago Correia, professor e investigador em Saúde Pública Internacional e Bioestatística, com uma relevância mediática regular nos últimos dois anos de pandemia, desvia a reflexão de sustentabilidade para viabilidade.
E, na sua opinião, o Serviço Nacional de Saúde não está ameaçado “no ponto de vista de desaparecer enquanto marca, enquanto designação com financiamento e prestação pública. Eu não acho que isso está em causa. Porquê? Porque seria uma movimentação política tão estrutural que não há nenhum indicador nos nossos dias que nos deixe antever que isso seja possível na Europa, em qualquer parte do mundo, mas por razões acrescidas na Europa.”
Mas a base de apoio coletivo ao SNS está a estreitar: “(…) o que critico no Serviço Nacional de Saúde é quão pouco inclusivo continua a ser das preferências da população e dos profissionais de saúde. E eu antevejo, olhando para trás e projetando as dinâmicas atuais e aquelas imediatas, é que o espaço de inclusão, ou o espaço de cobertura destas preferências coletivas, quer de cidadãos quer de profissionais de saúde, se está a estreitar.”
E reforça: “O que parece claro é uma coisa que nós temos e sempre tivemos em Portugal, por muito que custe afirmar, que é o sistema misto de saúde. E o que eu antevejo é que no futuro imediato vai haver uma maior competição, uma maior concorrência entre a prestação pública e as várias formas de prestação privada, quer do ponto de vista das preferências dos cidadãos a receber cuidados, o que é eles escolhem em primeiro lugar, quer do ponto de vista da preferência dos profissionais de saúde, onde é que eles querem trabalhar em primeiro lugar e, portanto, voltando ao início da pergunta, para mim a sustentabilidade é isto.”
Não vê o Serviço Nacional de Saúde como estando ameaçado em Portugal, ou noutro país, não vai desaparecer, “mas vai sendo menos sustentável à medida que menos pessoas quiserem aceder aos cuidados públicos e estiverem menos disponíveis para financiar cuidados de saúde através dos seus impostos, isto do lado dos cidadãos. E do lado dos profissionais, se esta base de preferência por trabalhar em serviços públicos se começa a estreitar e começam a optar por emigrar ou ir trabalhar para outros setores económicos, o que pode acontecer até com os profissionais menos qualificados.”
Queremos este SNS?
Eugénio Rosa, economista e membro do Conselho Diretivo da ADSE, é pragmático e cru neste ponto: “as pessoas não querem saber se são atendidas no público ou no privado, querem é ser bem atendidas”.
E Tiago Correia tem a mesma opinião: “Eu concordo muito com essa ideia, numa questão de renovação geracional. Ou seja, eu acredito que no passado isto não era tão marcado, temos várias gerações que conheceram o antes e o depois e conheceram a construção dos cuidados públicos de saúde, que sabemos que se iniciou ainda antes do 25 de abril, nomeadamente nos cuidados primários, os chamados centros de saúde. Mas acredito que, à medida que o tempo passa e temos gerações de pessoas que nasceram em liberdade e com serviços públicos consolidadíssimos e não têm uma ideia do antes e do depois, essas pessoas não têm a perceção do que acontecia antigamente. E não têm uma vinculação moral, afetiva e política à coisa pública. O que querem é comodidade, legitimamente. Querem ser atendidos rapidamente. E isto, uma vez mais, aplica-se aos cidadãos e aos profissionais de saúde. Há claramente ainda uma geração de profissionais que têm o SNS na sua identidade, médicos que fizeram o serviço médico à periferia, enfermeiros que estiveram na luta pelo Serviço Nacional de Saúde e tiveram a construção da identidade profissional ligada ao Serviço Nacional de Saúde e essa luta política desapareceu, o ativismo político desapareceu. Temos os profissionais mais jovens e eles querem lá saber se estão a trabalhar no Serviço Nacional de Saúde ou não, eles querem é ter boas condições, bons salários, boas condições do ponto de vista da conciliação trabalho/família, essas coisas todas que sabemos ser fundamentais.”
Portanto, há aqui dois âmbitos: a ligação afetiva e política ao SNS e o âmbito financeiro. Ambos estão a mudar – e dois anos de pandemia não reverteram o rumo disso.
Entrevistámos alguns colegas enfermeiros que estão a trabalhar no estrangeiro, para compreendermos a sua posição e a sua perceção entre serviços de saúde: o SNS que deixaram e o sistema em que trabalham atualmente.
A Enf.ª Marlene Viegas, que trabalha atualmente na Suíça, é expoente e referência desta mudança (geracional, como indicou o investigador Tiago Correia) na ligação ao SNS: “eu pago [na Suíça] mas eu tenho acesso e em Portugal eu pago mas não tenho acesso. Dou-lhe um exemplo, a minha mãe paga para a ADSE, paga para a Segurança Social e desde fevereiro de 2020 que não vê o médico de família. Portanto, quando me coloca a questão sobre seguro de saúde ou não eu era muito defensora dos cuidados do SNS mas quando comparo e o valor entre o nosso salário e o que pagamos de seguro e depois o que temos em troca há benefício. Para mim, foi muito difícil compreender isto por ser tão defensora do SNS, mas assim é e agora, pessoalmente, não trocaria. Aqui as pessoas não ficam anos à espera de uma consulta de oftalmologia, não ficam anos à espera de uma cirurgia. Claro que com a pandemia houve coisas que se atrasaram, cirurgias que foram adiadas por readaptação dos serviços e tudo o mais, mas o sistema funciona.”
Na dicotomia público ou privado, Eugénio Rosa sublinha a naturalidade do que acontece do lado dos profissionais: “Há toda uma cultura a nível dos profissionais de saúde em trabalhar num sítio e noutro [no público e no privado]. A remuneração líquida na Administração Pública, depois dos descontos, dá cerca de 1.700 euros para um médico e 1.000 para um enfermeiro, em média. Para a qualificação e responsabilidade deles, a remuneração é baixa e por isso há uma tentativa de complementar estes salários a trabalhar no privado, é um complemento ao salário deles. (…) Há pontos críticos no Serviço Nacional de Saúde, um é a promiscuidade e ninguém tem a coragem de acabar.”
SNS, o grande cliente e talent manager do privado
Eugénio Rosa é perentório: “Eu olho para o Serviço Nacional de Saúde numa perspetiva global articulada com o negócio privado da saúde. Em Portugal, a situação está a ser aproveitada pelos privados. Só para referir um aspeto chocante: quando visito um hospital privado pergunto sempre qual a dimensão do corpo clínico próprio de cada um dos hospitais. Lembro-me, por exemplo, na Trofa, tinham 7 médicos e o resto era tudo do Serviço Nacional de Saúde. Na Luz disse-me (e esses dados estão meio viciados porque tentam sempre empolar) que o corpo era de 30% e o resto do Serviço Nacional de Saúde. (…) A ADSE recebeu o corpo clínico afeto às convenções: 5.700 médicos – se tiver 700 médicos pertencentes ao próprio hospital privado já é muito.”
E reforça, “em termos de sustentabilidade, os profissionais de saúde são pagos à peça e os encargos sociais desses médicos são suportados pelo Serviço Nacional de Saúde e o privado não tem que pagar isso. (…) Os profissionais do SNS são um instrumento extremamente importante para o desenvolvimento dos valores privados da saúde. Quando falo em desenvolvimento do negócio privado, porque é um negócio mesmo, não é só o pagamento dos seguros e da ADSE, é também a exploração dos profissionais.”
E esta promiscuidade – termo do Eugénio – é também evidenciada com incredulidade por Vera Arreigoso, jornalista do Expresso para a área da Saúde: “não se entende – e muitas vezes questiono quando falo com muitas equipas do Serviço Nacional de Saúde – é por que razão o Estado, que não paga um determinado valor aos profissionais nos hospitais ou nas unidades públicas, paga outro valor muito superior às mesmas equipas, muitas vezes são os mesmos médicos, os mesmos enfermeiros, os mesmos técnicos, na unidade privada. Isso é que não se entende.”
Porque, na realidade, “parece que há dinheiro e há vontade de prestar aquele cuidado, não está é a ser prestado no Serviço Nacional de Saúde, está a ser prestado numa unidade privada, com profissionais do Serviço Nacional de Saúde e que vão à unidade privada receber aquilo que não recebem na sua casa e que, se fossem pagos da mesma maneira, estariam certamente na sua casa a trabalhar, não iriam à unidade vizinha, privada, onde vão com outro tipo de horário, como acontece muitas vezes com médicos numa área que é muito deficitária no serviço nacional de saúde, que é a anestesiologia. Nós temos muitos anestesistas que não estão nos hospitais públicos porque vão ao hospital privado trabalhar em convenções, ou seja, vão fazer exames ou participar em atos que são pagos pelo Serviço Nacional de Saúde, onde recebem 3-4 vezes mais do que se estivessem no seu hospital. E há chefes de equipa que me dizem claramente que se pudessem pagar o que o Estado paga no hospital privado na convenção nenhum deles saía dali, estavam cá todos a trabalhar ainda à hora do jantar, não iam para a unidade privada.”
Esta incompreensível gestão de profissionais e procedimentos é alargada aos equipamentos.
Vera avança: “porque mesmo no SIGIC [Sistema Integrado de Gestão de Inscritos para Cirurgia] os blocos não estão ocupados na atividade programada, ou normal, porque as equipas recebem X e a equipa sabe que se fizer à tarde recebe X+Y e portanto vai fazer à tarde. Por que razão, então, é que a equipa não recebe X+Y o dia todo? E a equipa está motivada e faz as cirurgias, o doente fica contente porque é operado dentro do tempo que é preciso e isso aumentaria a eficiência e, se calhar, no fim de contas, até se ia poupar dinheiro. Assim, não. A equipa transfere a cirurgia para a tarde para ganhar mais e, pior, como não consegue dar resposta porque o volume é grande transfere o cheque cirurgia para o privado. Portanto, o estado ainda vai pagar mais caro numa unidade privada. Até se podia dizer que não paga mais caro porque no privado não há todos os encargos associados a uma unidade pública como é a formação e todas as outras atividades não lucrativas e acaba por sair mais barato. Mas não acaba! Porque depois aquele doente volta para ser seguido no Serviço Nacional de Saúde e este ir e voltar tem uma consequência. Isso é que não se entende porque, ao fim e ao cabo, o estado acaba a gastar mais. Isto é um bocadinho as contas de merceeiro e nós estamos sempre a partir com défice.”
Eugénio Rosa foca exemplos concretos desta ineficiente gestão: “Isabel Vaz, a presidente do Grupo Luz, quis falar comigo e disse-me que o Serviço Nacional de Saúde era mal gerido e deu-me como exemplo o Hospital de Santa Maria que tem 12 ou 15 blocos operatórios e ela na Luz tinha 6 ou 7 blocos mas fazem mais cirurgias do que no Hospital de Santa Maria. Eu conheci o presidente do conselho de administração executiva [do Hospital de Santa Maria] e perguntei-lhe se era verdade, e ele ficou aflito e disse-me que era verdade mesmo porque, muitas vezes, não há anestesista, para fazer as operações ultrapassa-se o horário, aquilo é uma desorganização e no privado não é assim.”
E continua com citação de outro exemplo: “Lembro-me de uma dirigente do Sindicato dos Médicos que trabalhava no Hospital de São José e ela contou-me que tinha operado um equipamento que custou 1 milhão de euros e que era só utilizado a 20% ou 30 % no hospital e ela perguntava porque não fazer um acordo com outros hospitais para todos o utilizarem. Mas não o fazem, preferem autorizar ir fazer a um privado.”
A ineficiente gestão dos equipamentos é tema antigo e, conforme indica Eugénio Rosa, “no tempo do Correia Campos, ele criou uma comissão para estudar a sustentabilidade do Serviço Nacional de Saúde e essa equipa fez o levantamento da situação do Serviço Nacional de Saúde, sobre os equipamentos, utilização, até o Tribunal de Contas redigiu um documento em que referia que com menos 2 mil milhões fazia-se o mesmo se fosse bem utilizado. Perante uma coisa dessas, a primeira coisa que se devia fazer era investigar e não fizeram isso. Foram copiar o serviço nacional inglês, o NHS. Não há vontade para se resolver este tipo de questões.”
Os milhares de milhões são pura ilusão
Perguntámos ainda a Vera Arreigoso sobre a capacidade de resposta do orçamento geral do estado apresentado agora em 2022. E é impossível não focar a ilusão. “Quando chega o orçamento achamos que temos uma verba para utilizar durante os meses seguintes mas não temos porque grande parte é logo consumida para pagar o que ficou em dívida do ano anterior. Este subfinanciamento crónico, que é uma expressão que todos os anos se ouve ao nível da saúde, com imensas ideias e propostas de solução, nunca muda e voltamos, ano após ano, a ter mais dinheiro orçamentado para a saúde, mantemos o subfinanciamento e mantemos esta disfunção na atividade do Serviço Nacional de Saúde, que vai ficando muito evidente com a saída dos profissionais.”
Para Eugénio Rosa, a questão vai até além do subfinanciamento crónico: “Não é só o dinheiro a menos para a despesa que coloca o Serviço Nacional de Saúde numa situação de submissão em relação aos fornecedores. (…) Estive a ver os últimos dados que são publicados no portal Transparência do Serviço Nacional de Saúde e a dívida global do Serviço Nacional de Saúde a fornecedores (hospitais, fundamentalmente) estava em 1.600 ou 1.700 milhões de euros. O que os fornecedores privados fazem é que já sabem que vão ter um atraso nos pagamentos e aumentam os preços, o que ainda agrava mais a situação do Serviço Nacional de Saúde. E depois outro aspeto muito grave para o Serviço Nacional de Saúde é a falta de investimento. Por exemplo, pegamos no orçamento geral do estado, mesmo nesta proposta para 2022, e há investimentos que se repetem continuamente e não se faz nada, como, por exemplo, o Hospital Oriental de Lisboa que há anos se fala. É uma rubrica que passa de orçamento em orçamento e, além disso, põem lá um valor simbólico, 5 milhões de euros que não dá para nada. O mesmo com o Hospital de Évora, promete-se, inaugura-se a primeira pedra e não se sai da primeira pedra.”
A nível macroeconómico, e com estatísticas publicadas pelo INE sobre as despesas na administração pública, Eugénio Rosa indica que se “se comparar o investimento público com o consumo de capital fixo [o que se gasta pelo uso e até fica obsoleto pelo tempo] chegamos à conclusão que o investimento feito nem cobre isso – dá uma diferença, nestes últimos 6 anos do Costa, de 8 mil milhões de euros a menos. Ou seja, estraga-se mas não se substitui. Não só não se constroem hospitais novos, instalações novas, como aqueles que existem vão-se degradando e não se investe na manutenção. E tudo isso contribui para a degradação do Serviço Nacional de Saúde. Os investimentos são insuficientes. E nem falamos de ampliar a capacidade do Serviço Nacional de Saúde mas não há sequer investimento para se manter em funcionamento o que existe, recuperando.”
A pandemia nada reverteu
Questionámos Tiago Correia sobre se a pandemia garantiu uma esperança de vida maior ao Serviço Nacional de Saúde, ou evidenciou apenas o seu papel de recurso extremo.
“Acho que é muito injusto para o Serviço Nacional de Saúde exigir que esteja lá. É-lhe exigido que quando é necessário responda o melhor possível e, nessas circunstâncias, é muito acarinhado. Mas, quando estamos em situações de maior normalidade, em que não há emergências de saúde pública ou outras do nosso quotidiano, presentes no nosso dia a dia, as pessoas esquecem-se disso, as pessoas voltam à ideia de quererem aceder a cuidados de saúde o mais depressa possível com a maior comodidade possível. E não querem saber se são públicos ou privados e não querem saber se é injusto para o Serviço Nacional de Saúde porque, do ponto de vista da perceção coletiva, ele tem de responder sempre e tem de ser uma salvaguarda, como se fosse uma boia salva vidas. Agora, as pessoas não têm noção de que, para que seja uma boia salva vidas eficaz quando é necessário, há um trabalho constante que tem de ser feito, um investimento constante, uma máquina que tem de existir de forma muito eficaz e de forma muito acarinhada e protegida, e uma máquina pesadíssima porque caso contrário, nessas circunstâncias, ninguém tem dúvidas que irá funcionar.”
E continua: “É injusto porque em determinadas circunstâncias é lhe pedido tudo e, no caso da pandemia, o Serviço Nacional de Saúde, entenda-se os profissionais de saúde, responderam de forma heróica, não tenho outra forma de descrever, para mim foram mesmo os verdadeiros heróis da pandemia, por muitas dimensões. Mas, quando voltamos à normalidade, voltamos a não querer esperar por médico, por consultas, queremos aceder a médicos, queremos aceder a cirurgias e por aí fora, às vezes até questionamos porque pagamos tantos impostos. E volta-se a uma lógica de normalidade, de não querer saber onde sou atendido, quero é ser atendido rapidamente com qualidade e, de preferência, pagando o menos possível.”
Uma injustiça com laivos de desadequação por parte de quem governa, como lembrou a jornalista Vera Arreigoso.
“A pandemia foi a prova de que nem sempre quem governa está atento, como se viu por aquela gaffe da ministra ao dizer que precisava de profissionais resilientes. Foi um erro de comunicação brutal. Sabendo que havia profissionais que trabalhavam com fraldas para não estarem a despir o EPI, que bebiam menos líquidos para não terem de ir à casa de banho, para poupar. Para além de todo o trauma. As pessoas que vão para a saúde já têm um espírito de sacrifício e estão preparadas para muitas coisas duras, para ver gente morrer, para ver sangue mas dizer que não são resilientes… A visão de quem está no gabinete é muito diferente de quem está no terreno e isso vê-se nestas situações. Faz-se um orçamento geral do estado a falar de dedicação plena, de ter exames nos cuidados primários e depois há 1% de verba para os profissionais. Então mas isto faz-se como? É esta visão desfasada da realidade e da folha de Excel que é muito diferente.”
Há consenso na necessidade, diverge-se nas ideias, mas falta a coragem
Perguntámos: A Vera faz entrevistas a várias pessoas na área da saúde, administradores, gestores de equipa, profissionais que trabalham diretamente com os pacientes – deteta diferentes perspetivas em relação a esta questão de sustentabilidade e gestão de recursos ou é tudo unânime?
“Não. As opiniões são muito segmentadas, de acordo com a função. Os administradores, normalmente, não falam do dinheiro que não chega para gerir o hospital, do que se queixam muito é da falta de autonomia, de precisarem de contratar enfermeiros, precisarem de contratar médicos e outros profissionais de saúde, quererem e entenderem que tem de se pagar um pouco mais para atrair e reter essas pessoas, terem até modelos de remuneração diferentes, por incentivos, e não terem autonomia para o fazer, precisarem sempre de passar pelo calvário de ter de ir às finanças, ter de ir à saúde, para medidas de gestão corrente. E isso cria um grande descontentamento, sentem-se muito limitados na sua capacidade de gestão e de decisão. Tudo isso tem um impacto muito negativo na maneira como a instituição depois acaba por funcionar porque se pode ter toda a tecnologia, pode-se ter todos os medicamentos inovadores que são necessários mas se não houver equipas nada disso funciona e nada acontece.”
Continua: “Da parte dos profissionais, é sobretudo a falta de condições, não só de remuneração mas também os horários, o período de descanso, as horas extraordinárias, o funcionamento das equipas, a desigualdade que existe entre os profissionais – um enfermeiro que tem 20 anos de profissão a receber praticamente o mesmo que um enfermeiro que acabou de chegar e a quem ele tem de ensinar coisas básicas. Da parte do governo, quem está nestas estruturas mais acima, é sempre a ideia de que é preciso ter um maior controlo naquilo que é a distribuição das verbas, queixam-se que algumas administrações hospitalares não entregam os contratos-programa a horas e que depois eles também não conseguem avançar com a sua estratégia.”
E conclui: “Cada área tem as suas preocupações.”
Mas há consenso de base: “a sustentabilidade é algo que todos entendem que é indispensável mas depois não são avançadas medidas concretas e claras de como é que isso pode ser feito, de como é que cada um pode contribuir para essa sustentabilidade. Há muita teoria mas estamos sempre neste conjunto intencional e depois, conforme a ideologia de base, há quem refira muito a necessidade de termos uma maior participação das unidades privadas em sinergia com o Serviço Nacional de Saúde, uma relação vampiresca, se quisermos, em que um se alimenta do outro. E, noutra fação, a ideia de que há já uma grande participação privada que não devia existir, que devia haver uma maior separação entre os setores e que isso pode ser um grande contributo para a sustentabilidade. Mas haver uma estratégia, não há, são tudo ideias muito avulsas e, quando há estratégias concretas, no papel fazem muito sentido mas depois, na prática, há sempre qualquer coisa que não permite que aquilo avance.”
Tiago Correia parametriza esta dificuldade: “aqui o debate é muito difícil por ser um debate político e ideológico. É um debate político no sentido de ideologia ao mesmo tempo que é um debate político no sentido de análise.”
E com crítica reforça, “a questão política mais ideológica aqui, em Portugal, não nos tem ajudado nada porque o debate, a meu ver, tem estado muito polarizado e esta polarização é uma ideia anacrónica. Aqui, estou a fazer-me valer do meu conhecimento dos sistemas existentes a nível internacional, de que o Serviço Nacional de Saúde é apenas financiado pelo orçamento geral de estado para prestadores públicos. E é esse o ponto. Os que defendem a ideia de uma saúde pública, de uma ideia pública da saúde, estão muito centrados nesta ideia anacrónica de Serviço Nacional de Saúde e que choca com aqueles que, claramente, querem um sistema com iniciativa privada. E, a meu ver, o debate ideológico está como sempre esteve. Desde a construção do Serviço Nacional de Saúde, aqui, não se mexeu um milímetro.”
Porque é, na sua opinião, uma ideia anacrónica? “Porque a saúde pública, ou o investimento público na saúde, tem muitas configurações que nós não explorámos ainda em Portugal. Nós estamos ainda com uma formulação – vamos chamar-lhe de Arnaud – e estamos presos à formulação de Arnaud e não percebemos que, para defendermos a ideia de Arnaud, a formulação tem de ser diferente. Uma coisa é a ideia e outra a formulação. Os mecanismos de financiamento e de cuidados hoje em dia, como não poderia deixar de ser, são diferentes daqueles que existiam há 40 anos. E os defensores ideológicos do Serviço Nacional de Saúde não conseguem reconhecer isso porque qualquer coisa que não seja essa defesa é concebido como um ataque ao Serviço Nacional de Saúde. E isso é uma polarização da qual me tenho tentado distanciar porque não me revejo nisso. Sendo eu um defensor do Serviço Nacional de Saúde, note-se.
E continua: “Pergunta-me que outros mecanismos existem para a defesa do Serviço Nacional de Saúde. É a ideia, a definição, do que é que é público. E o que é público, os mecanismos que temos hoje em dia de financiamento público da saúde, é exclusivamente através do orçamento geral de estado, quando há outras formas de financiamento públicas. Por exemplo, seguros de saúde públicos, que é o que tem a Austrália ou o Canadá, países que conheço muito bem porque vivi no Canadá e trabalho muito com a Austrália. E não estou a dizer que são sistemas melhores que o nosso, estou a dizer que são sistemas públicos que funcionam e não deixam de ser públicos. Nós, em Portugal, estamos com a ideia de que financiamento público é orçamento geral de estado. Erro. O financiamento público pode ter outros mecanismos, nomeadamente a ideia da coletivização desse financiamento. Pode ser, por exemplo, um seguro nacional de saúde e um seguro nacional de saúde significa que parte do dinheiro não vem dos impostos para o bolo do orçamento geral de estado, mas pode ir para um bolo como é a segurança social. A segurança social é pública, não deixa de ser pública, mas tem um financiamento próprio. Portanto, isso é possível.”
Avança dados que reforçam a realidade que já existe e que a ideologia não permite admitir.
“Recordo que Portugal, no contexto europeu, é dos países que tem uma maior percentagem de seguros voluntários e dos chamados out of pocket payment. Isso é dos principais indicadores de que o sistema português não funciona bem e é absolutamente contraditório que um país com Serviço Nacional de Saúde tenha esta margem tão grande de seguros privados e de out of pocket payment.” Porque “a forma como nós temos os seguros voluntários a crescer significa que as pessoas, claramente, sentem que não têm a proteção à saúde que consideram desejável e preferem pagar mais para complementar o acesso aos cuidados de saúde de que precisam ou consideram que é necessário. Portanto, eu vejo mais esta proliferação dos seguros voluntários como uma não resposta do sistema muito mais do que a ideia de que deveríamos ter mais seguros sociais.”
Remata: “Enquanto estivermos nesse debate polarizado vejo a situação de uma forma muito pessimista, o tempo vai passando e aquela base coletiva de apoio vai-se desvanecendo. As preferências começam a ser cada vez mais por saber onde têm cuidados de saúde, rápidos e de qualidade. Até porque os profissionais de saúde são aqueles formados pelo Serviço Nacional de Saúde, que os deixa escapar.”
Para Eugénio Rosa, a solução não passa por seguros, como expõe no exemplo de discussão que teve com Isabel Vaz, a presidente do Grupo Luz: “ela fez uma sessão para vender uma solução a Portugal, queria vender a Portugal o que há na Holanda, que é um seguro de saúde geral e os que não podiam pagar o seguro o estado pagava e depois cada um escolhia o privado ou o público. Mas isso ia rebentar rapidamente com o público porque depois o público ficava sem receitas, desaparecia e eles aumentavam os preços.”
Mas é igualmente pessimista quanto ao futuro: “há um conjunto de medidas que têm de ser tomadas para impedir a contínua degradação do Serviço Nacional de Saúde, caso contrário corre-se o risco de o serviço ser só para aqueles que não têm dinheiro para o seguro de saúde – é quase voltar-se a antes de 1974.”
O número 120 da revista Enfermagem em Foco está disponível aqui.