Entrevista do Enfermeiro Diogo Gaivoto na rubrica Enfermeiros com Voz do número 120 da revista "Enfermagem em Foco".
Eu saí de Portugal em 2016, fui para Riade, para a Arábia Saudita, e neste momento estou num processo de mudança de hospital, saí do Hospital em Riade e vou para um Hospital em Jeddah, na costa do Mar Vermelho. A determinada altura, quando comecei a conhecer melhor o país e conheci Jeddah senti saudades de uma vida mais perto do mar.
Sou enfermeiro de cuidados gerais. Quando cheguei fui trabalhar para um serviço de medicina, era a minha experiência em Portugal, e estive aí 9 meses. Depois surgiu a oportunidade de fazer um treino para pediatria. Sendo homem, não podia ir para uma enfermaria normal, por causa das mães. Há esta diferença cultural, os homens não cuidam de mulheres a não ser nos serviços de urgência. Por isso fiquei em cuidados intensivos pediátricos. Estive lá 3 anos, até final de 2019, quando me mudei para a urgência de adultos.
Ganhava mais na pediatria porque, além do ordenado base, consoante a especialidade em que estivermos a trabalhar temos um bónus que, deduzo, é definido pela complexidade, penosidade e especificidade do trabalho.
E há carreira?
Não. Há uma evolução salarial ao longo dos anos, todos os anos, dependendo da avaliação anual. Os contratos são anualmente renováveis e ao fim do ano há uma avaliação, há sempre uma avaliação, e dependendo do score temos um aumento salarial de base. Mas carreira não.
Existem algumas figuras diferentes dentro da enfermagem. Os enfermeiros de cuidados gerais, os coordenadores (chefes de equipa), os clinical research nurse, que são enfermeiros muito ligados à parte da educação/formação, são quem recebe os novos enfermeiros e os integra, quem recebe os estudantes, e faz a ponte entre as boas práticas e a adequação disso para o contexto prático e é muito importante para a integração.
Como é em termos de acesso da população aos serviços?
Eles baseiam-se muito no sistema americano, com os seguros, seguros de empresa. As forças armadas têm os seus hospitais e também há hospitais públicos e do Ministério da Saúde mas há aqui um sistema misto e de elegibilidade.
Todas as pessoas têm acesso aos serviços de saúde. Dependendo da gravidade, pode haver a decisão de esta pessoa ser elegível neste hospital ou não. No caso do hospital onde eu estava, um hospital público mas muito associado às forças armadas, todas as pessoas e familiares tinham acesso.
Mas existe aqui uma parte cinzenta. Se a situação da pessoa for de vida ou de morte, obviamente a pessoa é admitida sempre, mas em alguns casos de situações graves… Lembro-me do caso de um cidadão paquistanês, não elegível no hospital, e que tinha um tendão com uma rutura e o cirurgião decidiu que não era uma questão de vida ou de morte e que, portanto, tinha de ir ao hospital onde era elegível. Faz-nos questionar um bocadinho acerca das pessoas mais desprotegidas em relação ao acesso à saúde.
E em relação aos seus pares, para eles é natural esse sistema?
Quando estamos a falar destes locais estamos a falar de culturas diferentes. Eu trabalhei com pessoas de muitas nacionalidades, com muitos filipinos, com muitos sauditas, com uma colega australiana, do Reino Unido… As pessoas que estão habituadas a ter serviço nacional de saúde, como os espanhóis, os colegas do Reino Unido, isto fazia-lhes alguma afronta, há um choque, como é que estamos a mandar esta pessoa embora, sem sequer com grande proteção.
São as camadas mais desprotegidas, mesmo em termos de condições de trabalho. Quando lhes dizíamos para irem ao hospital onde eram elegíveis, sabíamos que os estávamos a largar para se desenrascarem. Para nós era um choque cultural enorme.
Havia essa diferença com os colegas nacionais?
Para eles era normal, perfeitamente natural. Custa um bocado a assimilar, para quem vem de um local que oferece sempre garantias, independentemente de onde vem, da cidadania, da nacionalidade. Esta é uma questão muito importante. Lá não ganhamos consoante as nossas competências, ganhamos consoante o passaporte.
E em termos de equipamentos e de capacidade de resposta há muita diferença entre as várias instituições?
Penso que há uma grande diferença entre aquelas que têm um melhor financiamento, as condições mudam. Fala-se muito que há instituições que recebem da família real e há mecenas diretos. Mesmo dentro dos hospitais, há aqui o que se chama O Protocolo, basicamente que membros da família real têm uma enfermaria própria, têm uma forma de acesso aos serviços de saúde diferente dos restantes.
Depois de ir para fora, e com alguma distância, como é que hoje olha para o Serviço Nacional de Saúde português?
Olho como um dado adquirido que temos e que fazemos pouco por ele. Quando vejo estes casos de pessoas que são largadas à sua sorte, sem qualquer tipo de proteção, acho que é um bem incalculável. O facto de podermos entrar no Serviço Nacional de Saúde e termos a garantia de que temos cuidados independentemente da nacionalidade, da origem, dos rendimentos, é algo que eu acho que damos de barato e prezamos muito pouco.
E isso tem impacto na forma como a sociedade se estabelece, não é verdade?
Exatamente. Eu vou dar um exemplo de um cidadão do Bangladesh. Foi pouco antes de eu sair. Ele entrou com enfarte do miocárdio e precisava de um cateterismo. Nisso, em termos de prestação funciona muito rápido, temos um cardiologista muito rápido, fazemos eletrocardiograma, o cardiologista contactou o intervencionista, o intervencionista aceitou o caso para ir para cateterismo. Estamos a falar com o utente, estamos a explicar o que vai acontecer e depois quando estamos a dar os documentos para ele assinar, consentimento e tudo o mais, ele recusa. E nós ficamos incrédulos e explicámos que corria perigo de vida, que podia morrer. O senhor liga à esposa, ele não falava inglês mas estava com um amigo que falava e tentámos que o amigo o convencesse porque corria perigo de vida. Até que percebemos que ele pode estar preocupado é com o custo que possa ter. E nesse caso funciona bem, em caso de perigo de vida é acionado um formulário e as pessoas podem ser tratadas sem qualquer custo mas tivemos de insistir com o utente para que soubesse que não vai pagar nada, que é grátis, o tratamento é grátis. Tivemos de lhe dizer várias vezes que era grátis e que se não fizesse aquilo podia correr risco de vida e só depois de muita insistência é que ele aceitou o cateterismo. Recusam à partida um tratamento por medo dos custos, antes de saberem ainda quanto vai custar.
É brutal como isto se entranha nas pessoas, que o direito à vida e à saúde tem um preço, é uma transação. Mas o mais preocupante disto é quando entra na própria conceção e na mente dos profissionais de saúde. No serviço de urgência aparecem médicos de várias especialidades, e mesmo com enfermeiros, em que a primeira informação que pedem é se o doente era elegível, antes de perguntar o que o leva ao hospital. Mesmo os colegas que trazem o doente após a triagem, a primeira informação que dão é se o doente é elegível ou não. E depois isto entra já automaticamente, tanto nos médicos como nos enfermeiros.
O número 120 da revista Enfermagem em Foco está disponível aqui.