21 Abril, 2023
E o setor Privado? Entrevista com o Enf.º Jorge Rebelo

ENTREVISTA COM JORGE REBELO

SEP em Foco deste número é dedicado exclusivamente ao trabalho desenvolvido no SEP no setor privado e social. Este setor inclui os diferentes grupos e hospitais privados, as IPSS, as Misericórdias, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a Rádio Televisão Portuguesa e inclui também novos desafios, como o da Cruz Vermelha Portuguesa (Associação Humanitária), com as Mutualidades, e todas as outras unidades onde ainda não negociámos qualquer Instrumento de Regulamentação Coletiva de Trabalho.

E ninguém melhor do que o Enfermeiro Jorge Rebelo, o dirigente do SEP à frente desta área (há tantos anos que já quase nem se lembra quando começou) para servir de guia.

Começamos no futuro. Como antecipas o setor privado no espaço de dez anos?

Neste momento, vejo o setor privado da saúde ainda como um complemento ao Serviço Nacional de Saúde. Na prática, o privado, no seu conjunto, é alargado e muito diversificado e tem alicerçado o seu desenvolvimento nas fragilidades e na desorganização do SNS. O setor é, como disse, muito diversificado e alargado na sua oferta cobrando às pessoas a rapidez do seu serviço. Portanto, e sem querer ser redutor, vejo o setor privado como consultas, transplantes, cirurgias, exames e serviços de âmbito social e de saúde a pessoas mais idosas e com alguma incapacidade física ou mental. Penso que o setor privado, em sentido lato, irá ter um grande desenvolvimento, mesmo que não tenha a mesma forma que hoje tem.

Recordo que, há uns anos, o setor privado, como área de negócio, era feito por pequenas clínicas quase de ”vão de escada” e, lentamente, passámos a ter os grandes grupos, não só nacionais, mas também internacionais a tomar conta do “negócio”. Isto é o setor privado, puro e duro. O negócio desenvolve-se quando existe procura e os utentes queriam respostas.

Cada vez mais, se fala em doença, toda a gente tem doenças e, se não as têm, o marketing vai encarregar-se de lhes encontrar uma. Estamos muito focados no corpo, no individual, mas, e à medida que vamos envelhecendo, temos cada vez mais doenças e incapacidades. Aparece então todo aquele setor maioritariamente dominado pelas Misericórdias, pelas Instituições Particulares de Solidariedade Social (IPSS), pelas Mutualidades e por alguns pequenos grupos privados que “oferecem” a melhor “casa de fim de vida”. Esta é uma realidade que se expande. Ao mesmo tempo, está concentrada em três ou quatro Grupos, uns regionais e outros a nível nacional, deixando o apoio e a institucionalização das pessoas em final de vida para instituições de âmbito social, sejam elas Misericórdias ou não.

O Estado tem interesse nisto. E porquê? Porque lhes sai mais barato! 

Apesar de serem funções sociais do Estado, e destas serem da sua responsabilidade, o Estado passou, ou delegou, a sua responsabilidade nas IPSS e Misericórdias que, sem fins lucrativos, poderiam resolver os problemas sociais e de apoio a pessoas idosas e frágeis, mas sem dispensar os necessários créditos para contratar os recursos humanos necessários. A contratação coletiva e a relação destas entidades com os seus trabalhadores tem sido miserabilista.

Há também outro dado, que é importante realçar e que passa pela própria Comunicação Social e no que ela transmite que, como sabemos, molda o comportamento das pessoas, na sua formação em geral e no desejo que provoca de compra de consultas e exames, como se já estivéssemos doentes. Falta-nos a segurança que os cuidados de saúde primários devem dar às pessoas.

Esta alienação vai no sentido de parecer que cada um é detentor de um máximo de consultas e exames, independentemente do tipo de exames. E é isto que ajuda o privado a crescer. Todos nós dizemos que é preciso as pessoas serem mais letradas no âmbito da saúde mas, na realidade, o que alguns Órgãos de Comunicação Social fazem é alienar as pessoas no que à promoção da saúde diz respeito. Por exemplo, nos programas da manhã, na televisão, quando aparece lá alguém a falar sobre esclerose múltipla ou outra doença qualquer, o que se constata é o aumento da procura de especialistas dessa área e de pessoas que, face ao que ouviram na televisão, começam a ser um poço de doenças. E todos nós somos um poço de doenças. Ora, a doença é uma forma de financiamento do setor privado. 

Por isso, eu acho que o negócio vai expandir-se, para mais com esta situação do Serviço Nacional de Saúde, onde não se investe no âmbito dos cuidados de saúde primários. São as dificuldades de acesso, é a Comunicação Social e é um conjunto de outras situações que levam também  ao crescimento do setor social. 

Nesta dicotomia público/privado, como é que isso se vai refletir ao nível dos profissionais de saúde, nomeadamente dos enfermeiros? 

Bem, eu estou a falar com o conhecimento de alguém que foi criado numa determinada época e teve uma determinada formação e, provavelmente, não estou capacitado para falar sobre os jovens e sobre aquilo que os jovens pensam, mesmo no âmbito da sua formação. 

Quando comecei a trabalhar, no meu primeiro estágio, no meu primeiro ano, eu entrava num hospital e os enfermeiros e os utentes tratavam-me logo por enfermeiro e isso era uma forma de nos englobar, aqueles velhos tentavam-me englobar naquilo que era aquele conjunto. Agora dizem: “Você tem de ser um empreendedor, tem de ser melhor do que o outro.” No passado, não se pensava desta forma e o privado claro que vai explorar isto. 

Aquilo que tínhamos como igual vai desaparecer tendencialmente e levando a lutas entre enfermeiros. Eles veem que os seus pares, os médicos, funcionam dessa maneira, cultiva-se o individualismo apesar de terem uma base comum. Nós não tínhamos isso. 

Quando fizemos a construção do desenvolvimento da profissão – e estamos a falar de toda a década de 80 – fizemos acontecer um conjunto de modificações, que foram fruto do que os nossos anteriores colegas  tinham desenvolvido,  e nisto éramos um corpo. Tanto éramos um corpo que fizemos um Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros e uma Ordem. Hoje, não sentimos este fator de agregação, e isso também tem a ver, se calhar, com aquilo que é a construção dos jovens e naquilo que a academia, as escolas, lhes apontam como caminho de desenvolvimento. 

Como vai ser no futuro? Não sei. 

O que eu desenvolvo, enquanto membro do SEP, é a contratação coletiva. Mas falar de contratação coletiva no abstrato não quer dizer nada.

Para se falar disto tem de se falar de negociação e de trabalhadores que, neste caso, são enfermeiros disponíveis e conscientes do que querem contratar e da relação com as entidades patronais. Para haver uma negociação, os enfermeiros que estão no processo negocial têm de saber, em primeiro lugar, o que são. Mais do que saber se querem mais 20 euros, têm de saber o que são. Porque, quando o enfermeiro vai falar com a entidade empregadora, esta está munida de advogados, de legislação, mas não está munida do conhecimento daquilo que os enfermeiros podem e devem fazer, ou seja, o que é ser enfermeiro. Quando isto não existe e quando nós não valorizamos a nossa essência, como corpo de conhecimento e de experiência, dificilmente conseguiremos atingir os nossos objetivos. É deveras importante saber o que é que nós somos na sociedade e no mundo, enquanto profissionais, Se nós não tivermos isto como central poderíamos dizer que, num processo negocial, poderemos ser substituídos por um qualquer advogado.

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